sábado, 5 de novembro de 2011

30. DICIONÁRIO DE POLÍTICA.



PESQUISADO E POSTADO, PELO PROF. FÁBIO MOTTA (ÁRBITRO DE XADREZ).

REFERÊNCIA:

http://www.ebah.com.br/content/ABAAAARGAAL/dicionario-politica-noberto-bobbio-nicola-matteucci-gianfranco-pasquino
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Este Dicionário de Política é destinado ao leitor não-especialista, ao homem culto, aos estudantes de segundo grau e nível superior, e a todos os que lêem revistas e jornais políticos, aos que ouvem conferências e discursos, aos que participam de comícios ou que assistem a debates na televisão, dirigidos por especialistas ou por políticos profissionais.
Oferece uma explicação e uma interpretação simples e possivelmente exaustiva dos principais conceitos que fazem parte do universo do discurso político, expondo sua evolução histórica, analisando sua utilização atual e fazendo referência aos conceitos afins ou contrastivamente antitéticos, indicando autores e obras a eles diretamente ligados.
São mais de 1.300 páginas, agrupadas em dois volumes para facilitar sua consulta, através de verbetes, ordenados alfabeticamente e esquematizados de modo a informar, conceituar e debater os principais aspectos de cada problema versado.
Seus autores são cientistas políticos de conceito acadêmico reconhecido mundialmente e que contaram com a colaboração de uma equipe de especialistas em questões políticas, sociológicas, históricas, jurídicas e econômicas, oriundos das universidades de Turim, Florença, Bolonha, Pádua, Pavia e Roma. Há também colaboradores de Bonn, Massachusetts-Amherst e Ohio.
DICIONÁRIO DE POLÍTICA VOL. 1

Reitor Lauro Morhy
Vice-Reitor Timothy Martin Mulholland
Diretor Alexandre Lima
Presidente Emanuel Araújo
Alexandre Lima Álvaro Tamayo
Aryon Dall'Igna Rodrigues Dourimar Nunes de Moura
Emanuel Araújo
Euridice Carvalho de Sardinha Ferro
Lúcio Benedito Reno Salomon
Mareei Auguste Dardenne
Sylvia Ficher
Vilma de Mendonça Figueiredo Volnei Garrafa

Tradução
Carmen C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini
Coordenação da tradução João Ferreira Revisão geral o Ferreira e Luís Guerreiro Pinto Cacais

Direitos exclusivos para esta edição: EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA SCS Q.02 Bloco C N 78 Ed. OK 2º andar 70300-500 Brasília DF Tel.: (061) 226-6874 ramal 30 Fax: (061) 225-5611
Título original: Dizionario di política Copyright © 1983 by UTET (Unione Tipográfico Editrice Torinese)
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorização por escrito da Editora.
Impresso no Brasil
Lúcio REINER MARIA HELENA DE A. MIRANDA WÂNIA ARAGÃO C. RIGUEIRA THELMA ROSANE P. DE SOUZA CÉLIA LADEIRA WILMA G. ROSAS SALTARELLI
ISBN: OBRA COMPLETA: 85-230-0308-8 VOLUME 1: 85-230-0309-6
Dados de catalogação na publicação (CIP) internacional Câmara Brasileira do Livro - SP/Brasil
Bobbio, Norberto, 1909- Dicionário de política I Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino; trad. Carmen C, Varriale et ai.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1 la ed., 1998. Vol. 1: 674 p. (total: 1.330 p.) Vários Colaboradores. Obra em 2v.
1. Política - Dicionários 1. Matteucci, Nicola I. Pasquino, Gianfranco I. Título. 91-0636 CDD 320.03
Índice para catálogo sistemático: 1. Dicionários: Política 320.03 2. Política: Dicionários 320.03
A. Maria Conti Odorisio, Universidade de Roma Giuseppe Ricuperati, Universidade de Turim A. Maria Gentili, Universidade de Bolonha Gladio Gemma, Universidade de Móden a Alberto Marradi, Universidade de Bolonha Glória Regonini, Universidade de Milão Aldo Agosti, Universidade de Turim Guido Fassò, outrora da Universidade de Bolonha Aldo Maffey, Roma Guido Verrucci, Universidade de Salerno Alessandro Cavalli, Universidade de Pavia Gustavo Gozzi, Universidade de Bolonha Alessandro Passerin D'Entreves, Universidade de Turim Ida Regalia, Universidade de Milão Alfio Mastropaolo, Universidade de Turim ítalo de Sandre, Universidade de Pádua Ângelo Panebianco, Universidade de Bolonha Jean Gaudemet, Universidade de Paris (I) Anna Anfossi, Universidade de Turim Jean-Marie Mayer, Universidade de Sorbonne, Paris Anna Oppo, Universidade de Cagliari Karl D. Bracher, Universidade de Bonn Arturo C. Jemolo, outrora da Universidade de Roma Laura Conti, Milão Arturo Colombo, Universidade de Pavia Leonardo Morlino, Universidade de Florença Bruno Bongiovanni, Universidade de Turim Liliana Ferrari, Universidade de Trieste Camillo Brezzi, Universidade de Arezzo Lorenzo Bedeschi, Universidade de Turi m Cario Baldi, Universidade de Bolonha Lorenzo FischeUniversidade de Turim r, Cario Guarnieri, Universidade de Bolonha Lisa Foa, Roma Cario Leopoldo Ottino, Turim Luciano Bonet, Universidade de Turim Cario Marletti, Universidade de Turim Lúcio Levi, Universidae de Turim d Carlos Barbé, Universidade de Turim Ludovico Incisa, Roma Cassio Ortegati, Pavia Luigi Bonanate, Universidade de Turim Cesare Pianciola, Turim Luigi Salvatorelli, outrora da Universidade de Turim Cláudio Cesa, Universidade de Sena Mabel Olivieri Barbé, Universidade de Turim Cláudio Zanghi, Universidade de Messina Marco Cammelli, Universidade de Módena Cristina Marchiaro Cercho, Turim Marino Regini, Universidade de Milão Danilo Zolo, Universidade de Sassari Mário Stoppino, Universidade de Pavia Domenico Barillaro, outrora da Universidade de Roma Massimo Follis, Universidade de Turim Domenico Fisichella, Universidade de Roma Massimo Jasonni, Universidade de Bolonha Domenico Settembrini, Universidade de Pisa Marulio Guasco, Universidade de Verona Edda Saccomani Salvador, Universidade de Turim Maurizio Cotta, Universidade de Sena Edoardo Grendi, Universidade de Gênova Mauro Ambrosoli, Universidade de Turim Emanuele Marotta, Como Mirella Larizza, Universidade de Turim Emile Poulat, Centro Nacional de Pesquisa Científica, Nicola Matteucci, Universidade de Bolon ha
Paris Nicola Tranfaglia, Universidade de Turim
Enrica Collotti Pischel, Universidade de Bolonha Nino Olivetti Rason, Universidade de Pádua Ernesto Molinari, Universidade de Bolonha Norberto Bobbio, Universidade de Turim Ettore Rotelli, Universidade'de Bolonha Orazio M. Petracca, Universidade de Salerno Fábio Roversi-Monaco, Universidade de Bolonha Paolo Ceri, Universidade de Turim Fabrizio Bencini, Florença Paolo Colliva, Universidade de Bolonha Felix E. Oppenheim, Universidade de Massachusetts/ Paolo Farneti, outrora da Universidade de Turim
Amherst Paulo Menzozzi, Universidade de Bolonha
Francesco Margiotta Broglio, Universidade de Florença Pier Paolo Giglioli, Universidade de Milão Francesco Rossolillo, Universidade de Pavia Pirangelo Schiera, Uniersidade de Trento v Franco Garelli, Universidade de Turim Piero Ostellino, Milão Franco Mosconi, Universidade de Pavia Roberto Bonini, Universidade de Bolonha Fulvio Attinà, Universidade de Catânia Roberto D'Alimonte, Universidade de Florença Giacomo Sani, Universidade de Columbia, Ohio Saffo Testoni Binetti, niversidade de Bolonha U Giampaolo Zucchini, Universidade de Bolonha Sandro.Ortona, Turim Gian Enrico Rusconi, Universidade de Turim Sérgio Bova, Universidade de Turim Gian Mario Bravo, Universidade de Turim Sérgio Pistone, Universidade de Turim Gianfranco Pasquino, Universidade de Bolonha Sérgio Ricossa, Universidade de Turim Gianni Baget Bozzo, Gênova Sérgio Scamuzzi, Universidade de Turim Gianni Vattimo, Universidade de Turim Silvano Belligni, Universidade de Turim Giorgio Bianchi, Turim Silvio Ferrari, Universidade de Parma Giorgio Freddi, Universidade de Bolonha Siro Lombardini, Universidade de Turim Giorgio Pastori, Universidade Católica de Milão Stefano Bartolini, Universidade de Florenç a Giovanna Zincone, Universidade de Turim Tiziano Bonazzi, Universidade de Bolonha Giuliano Martignetti, Turim Tiziano Treu, Universidade de Pavia Giuliano Pontara, Universidade de Estocolmo Umberto Gori, Universidade de Florença Giuliano Urbani, Universidade Bocconi de Milão Valério Zanone, Roma Giuseppe Badeschi, Universidade de Roma Vincenzo Cesareo, Universidade Católica de Milão Giuseppe De Vergottini, Universidade de Bolonha Vincenzo Lippolis, Universidade de Roma
A política é notoriamente ambígua. A maior parte dos termos usados no discurso político tem significados diversos. Esta variedade depende, tanto do fato de muitos termos terem passado por longa série de mutações históricas — alguns termos fundamentais, tais como "democracia", "aristocracia", "déspota" e "política", foram-nos legados por escritores gregos —, como da circunstância de não existir até hoje uma ciência política tão rigorosa que tenha conseguido determinar e impor, de modo unívoco e universalmente aceito, o significado dos termos habitualmente mais utilizados. A maior parte destes termos é derivada da linguagem comum e conserva a fluidez e a incerteza dos confins. Da mesma forma, os termos que adquiriram um significado técnico através da elaboração daqueles que usam a linguagem política para fins teóricos estão entrando continuamente na linguagem da luta política do dia-a-dia, que por sua vez é combatida, não o esqueçamos, em grande parte com a arma da palavra, e sofrem variações e transposições de sentido, intencionais e não-intencionais, muitas vezes relevantes. Na linguagem da luta política quotidiana, palavras que são técnicas desde a origem ou desde tempos imemoriais, como "oligarquia", "tirania", "ditadura" e "democracia", são usadas como termos da linguagem comum e por isso de modo nãounívoco. Palavras com sentido mais propriamente técnico, como são todos os "ismos" em que é rica a linguagem política — "socialismo", "comunismo", "facismo", peronismo", "marxismo", "leninismo", stalinismo", etc. —, indicam fenômenos históricos tão complexos e elaborações doutrinais tão controvertidas que não deixam de ser suscetíveis das mais diferentes interpretações.
Pois bem: o escopo deste dicionário é o de oferecer a um leitor não-especialista, ao homem culto e aos estudantes de segundo grau e nível superior, e a todos os que lêem revistas e jornais políticos, aos que ouvem conferências e discursos, aos que participam de comícios ou que assistem a debates na televisão, dirigidos por especialistas ou por políticos profissionais, uma explicação e uma interpretação simples e possivelmente exaustiva dos principais conceitos que fazem parte do universo do discurso político, expondo sua evolução histórica, analisando sua utilização atual e fazendo referência aos conceitos afins ou contrastivamente antitéticos, indicando autores e obras a eles diretamente ligados.
Como o universo da linguagem política não é um universo fechado e comunica com os universos contíguos, como são o da economia, da sociologia e do direito, haverá também neste dicionário palavras do vocabulário econômico, como "capitalismo", ou sociológico, como "classe", ou jurídico, como "codificação". O leitor não deve procurar aqui, para esses termos, um tratamento completo como o que acharia em dicionários de economia, de sociologia ou de direito, pela simples razão de haver apenas o intuito de as incluir e de as tratar no que tange aos aspectos políticos mais específicos do conceito. No mais, diferentemente de outras ciências que têm uma tradição mais longa e uma autonomia reconhecida e respeitada, a ciência política, apesar de antiga, não alcançou ainda uma autonomia completa. Por esse motivo, tanto os sociólogos, como os juristas, os economistas e os historiadores sempre ofereceram a ela importantes contribuições, O leitor não deverá surpreender-se, por conseguinte, que para a redação de alguns verbetes deste dicionário tenham sido convidados, além de cientistas políticos propriamente ditos, também sociólogos, juristas, economistas e historiadores. É possível que a diferenciada proveniência dos autores de cada verbete repercuta numa certa desigualdade ou diferenciação de estilo e até de linguagem. Trata-se porém de um inconveniente inevitável no estado atual do desenvolvimento dos estudos políticos.
Nenhum termo da linguagem política é ideologicamente neutro. Cada um deles pode ser usado como base na orientação política do usuário para gerar reações emocionais, para obter aprovação ou desaprovação de um certo comportamento, para provocar, enfim, consenso ou dissenso. Apesar do esforço em se evitar o uso da linguagem prescritiva, a presunção do dever ser, e apesar de se haver preferido a descrição dos diversos significados ideológicos em que um termo é usado à imposição de um deles, ou seja, apesar de se ter procurado falar da maneira mais neutral possível de termos que em si mesmos nunca são neutros, não se pode excluir que os autores dos verbetes, sobretudo daqueles em cujo conteúdo mais se agitam e mais são agitadas as paixões partidárias, tenham deixado transparecer suas simpatias ou antipatias. A impassibilidade é uma virtude difícil. E quando é levada até suas extremas conseqüências do desapego ou da indiferença não é nem sequer uma virtude.
Como todos os dicionários, também este, que teve de enfrentar matéria acidentada e de contornos confusos, sem ter o respaldo de uma tradição consolidada de empresas análogas, não pode deixar de ter suas lacunas. A ausência de palavras da gíria política quotidiana é intencional. Algumas lacunas são aparentes, uma vez que, para não multiplicar inutilmente o número de verbetes, reuniram-se matérias afins dentro de um verbete idêntico. Para identificá-las, bastará que o leitor use o índice analítico. Outras lacunas dependem certamente de esquecimento: e ao mesmo tempo que pedimos desculpa disso, desejaríamos ter leitores tão interessados que tomassem consciência delas e nos transmitissem suas observações.

Absolutismo.
I. O ABSOLUTISMO COMO FORMA ESPECÍFICA DE ORGANIZAÇÃODOPODER.— Surgido talvez no século XVIII, mas difundido na primeira metade do século XIX, para indicar nos círculos liberais os aspectos negativos do poder monárquico ilimitado e pleno, o termo-conceito Absolutismo espalhou-se desde esse tempo em todas as linguagens técnicas européias para indicar, sob a aparência de um fenômeno único ou pelo menos unitário, espécies de fatos ou categorias diversas da experiência política, ora (e em medida predominante) com explícita ou implícita condenação dos métodos de Governo autoritário em defesa dos princípios liberais, ora, e bem ao contrário (com resultados qualitativa e até quantitativamente eficazes), com ares de demonstração da inelutabilidade e da conveniência se não da necessidade do sistema monocrático e centralizado para o bom funcionamento de uma unidade política moderna.
A força polêmica do termo, presente desde sua aparição e nunca abafado pela sua contraditória difusão, acelerou e acentuou por uma parte o sucesso, mas também proporcionou vários equívocos sobre sua essência, tornando de uma certa maneira problemática a utilização dentro de margens rigorosamente suficientes para garantir a cientifícidade requerida pela própria pesquisa historiográfica.
A primeira generalização a que inevitavelmente se chegou foi a de identificar o conceito de Absolutismo com o de "poder ilimitado e arbitrário". Se esta era a provável origem do significado do termo, é também evidente que se tratava de uma acepção indubitavelmente útil no plano do debate político e ideológico mas inteiramente estéril para fins de pesquisa histórico-política e constitucional, desde o momento em que nada acrescentava em termos de distinção e especificação no seio de um fenômeno genérico em si e meta-histórico como o do poder.
Daqui veio a dupla tendência em ligar estritamente o conceito em questão com uma perspectiva eminentemente tipológica e estrutural, confundindo-o ou assimilando-o com outro conceito, bem mais definido no plano lógico e dos conteúdos, que é o de "tirano"; ou então reduzi-lo a sinônimo da mais precisa especificação histórica do Governo arbitrário que é o "despotismo", com seus insubstituíveis elementos mágico-sagrados e sua absoluta falta de referências jurídicas, em sentido ocidental. Em ambos os casos, mas sobretudo no segundo (no qual mesmo no plano lingüístico foi onde se criaram os maiores equívocos, com a utilização, ainda não inteiramente superada, dos dois termos como sinônimos nas principais línguas européias), houve uma conseqüência posterior: projetar o Absolutismo na dimensão, eminentemente contemporânea, do "totalitarismo".
É evidente que se trata, em todo o caso, de um conceito artificial. Tanto nos seus significados polêmicos como nos diferentes significados que lhe são atribuídos, toda a definição de Absolutismo não pode deixar de parecer "externa", convencional e relativa, passível, portanto, de ser avaliada só em função do grau de clareza que pode introduzir na compreensão — no plano histórico e, como conseqüência, também no categorial — de um aspecto imprescindível da experiência política, que é o poder.
Não se pode prescindir, portanto, se quisermos aprofundar este aspecto, da séria tentativa de relacionar o Absolutismo com uma forma específica de organização do poder, característica em relação a outras. Tal especificidade podemos verificá-la particularmente no plano histórico, referida a uma determinada forma histórica de organização do poder. A perspectiva que daí resulta é, portanto, em primeiríssimo lugar, histórico-constitucional. Em sua essência, os parâmetros classificatórios mais óbvios e rentáveis parece serem os que estão ligados ao espaço cultural do Ocidente europeu, no período histórico da Idade Moderna e na forma institucional do Estado moderno. A primeira limitação serve, antes de tudo, para manter as distâncias da experiência oriental e eslava do despotismo cesaropapista. A segunda
2 ABSOLUTISMO serve para diferenciar a organização "absolutista" do poder do sistema político feudal anterior e da antiga S(.).A terceira, finalmente, serve para lembrar os contornos concretos que o Absolutismo assumiu como "forma" histórica de poder.
I. A .— De um ponto de vista descritivo, podemos partir da definição de Absolutismo como aquela forma de Governo em que o detentor do poder exerce este último sem dependência ou controle de outros poderes, superiores ou inferiores. Inteiramente diferente seria defini-lo como "sistema político em que a autoridade soberana não tem limites constitucionais", ou apenas "sistema político que se concretiza juridicamente através de uma forma de Estado em que toda a autoridade (poder legislativo e executivo) existe, sem limites nem controles, nas mãos de uma única pessoa". O problema decisivo é o dos limites: a respeito dele, o Absolutismo se diferencia de forma clara da tirania, por uma parte, e do despotismo cesaropapista, por outra.
Em primeiro lugar, na verdade, a redução, válida, embora elementar, do princípio de fundo do Absolutismo à fórmula legibus solutus, referida ao príncipe, implica autonomia apenas de qualquer limite legal externo, inclusive das normas postas pela lei natural ou pela lei divina; e também, a maior parte das vezes, das "leis fundamentais" do reino. Trata-se, portanto, mesmo em suas teorizações mais radicais, de um Absolutismo relativo à gestão do poder, o qual, por sua vez, gera limites internos, especialmente constitucionais, em relação aos valores e às crenças da época. O Absolutismo não é portanto uma tirania.
Secundariamente, aqueles limites, em particular os dois primeiros, embora sejam de natureza religiosa ou sacra, são apenas limites: desempenham um papel negativo, mas não representam a substância do Absolutismo ou o seu conteúdo. Representam apenas o imprescindível termo de confronto, o limite que não é possível ultrapassar em relação à tirania. Assim, o Absolutismo é totalmente diferente do despotismo, o qual, ao contrário, acha nos elementos mágicos, sagrados e religiosos a própria identificação positiva, a própria legitimação última.
Trata-se então de um regime político constitucional (no sentido de que seu funcionamento está sujeito a limites e regras preestabelecidas), não arbitrário (enquanto a vontade do monarca não é ilimitada) e sobretudo de tradições seculares e profanas. Com tais características, a colocação espacial e cultural, cronológica e institucional do Absolutismo adquire maior crédito e significado.
Dando convencionalmente por descontado o término final do Absolutismo na Revolução Francesa (mesmo ficando de pé o problema da sobrevivência de elementos absolutistas em diversos países da Europa continental), as opiniões são necessariamente contrastantes quanto ao seu início. Presente, em condições mais ou menos evoluídas após o estádio de desenvolvimento das diversas monarquias "nacionais" européias, já na fase de transição do sistema feudal para o Estado moderno, é concomitante com a afirmação deste último que o regime absolutista se afirma plena e conscientemente tanto no plano prático quanto no plano teórico. A parte, portanto, a necessidade de investigar as origens e as antecipações até ao século XIII, podemos talvez razoavelmente atribuir-lhe como idade peculiar, se não exclusiva, a que vai do século XVI ao século XVIII. Entretanto, mais complicado seria tentar fixar, dentro destes limites, seu desenvolvimento homogêneo nas diversas experiências políticas européias, onde, ao contrário, ele se apresentou em tempos e modos diferenciados, dando lugar a não poucos e importantes problemas de recepção ou de influências a partir de várias experiências. Basta pensar nas enormes diferenças existentes entre o Absolutismo inglês, francês e alemão.
Falta dizer, enfim, algo sobre o risco conexo com uma excessiva identificação do Absolutismo com a forma histórica ocidental moderna do Estado. Em primeiro lugar, porque sempre existiram ilustres exemplos de organização estatal moderna no Ocidente inteiramente distantes da hipótese absolutista. Em segundo lugar, porque esta é apenas uma hipótese que foi freqüentemente realizada de uma maneira completa, mas nunca a ponto de excluir outras hipóteses e orientações, opostas ou contraditórias, de cuja dialética derivou boa parte do posterior desenvolvimento constitucional. Se, portanto, na sua primeira fase, o Estado ocidental moderno foi, antes de mais nada, um Estado absoluto, ele não foi só isso e o Absolutismo foi apenas nele um componente essencial, juntamente com outros. Foi um elemento característico mas não exclusivo das constituições ocidentais, podendo ser reduzido, em sua essência, a dois princípios fundamentais, o da secularização e o da racionalização da política e do poder. De tal processo, o Absolutismo representou certamente, no plano teórico e prático, uma das contribuições mais eficazes do espírito europeu e merece ser estudado debaixo desta luz.
I. A-.— Se esta hipótese é verdadeira, o Absolutismo apresenta-senos em sua forma plena como a conclusão de uma longa evolução, a qual, através da indis-
ABSOLUTISMO 3 pensável mediação do cristianismo como doutrina e da Igreja romana como instituição política universal, conduz, desde as origens mágicas do poder, até a sua fundação em termos de racionabilidade e eficiência. Este fato é perfeitamente testemunhado pela evolução sofrida pelo princípio de legitimação monárquica da antiga investidura, transmitida à monarquia de direito divino através da graça divina, e também o princípio monárquico constitucional do século XIX. Tal evolução vai de uma justificação perfeitamente religiosa, embora cada vez menos mágica, do poder, até o tipo heróico e classista, que podemos individualizar entre 1460-1470 e 1760-1770, caracterizada por uma feição ideológica e propagandística de tipo mitológico em relação à figura do príncipe, até alcançar uma postura eminentemente jurídica e racional em relação aos fins.
A amplitude da parábola dentro da qual o
Absolutismo se coloca permite atribuir um significado menos superficial à sua raiz etimológica. O conceito de legibus solutus denuncia imediatamente que o terreno sobre o qual se sediou desde o fim da Idade Média a obrigação política no Ocidente foi jurídico. Nesse âmbito, todavia, em que dominava a tradição romana, tida como viva e interpretada pela Igreja, se verificou, no início da Idade Moderna, uma brecha revolucionária, na medida em que a independência das leis se torna bem depressa o emblema dos novos princípios territoriais que aspiravam à conquista e à consolidação de uma posição de autonomia, em contraste com as pretensões hegemônicas imperiais e papais de uma parte e com os senhores locais de outra. No fundo, este desencontro refletia porém uma mudança cultural importante, tornada possível e incrementada pela descoberta do direito romano e pela imensa obra de modernização e interpretação levada a cabo pelos juristas leigos e eclesiásticos, pelas escolas e pelas orientações que se sucederam em toda a Europa até o século XVII. Trata-se da progressiva contestação do "bom direito antigo", do simples e indemonstrado apelo a "Deus e ao direito", da concepção — de natureza evidentemente sacra — do direito "achado" pelo príncipe-sacerdote na grande massa das normas, consuetudinárias, naturais e divinas, existentes desde tempos imemoriais. Em seu lugar afirma-se a idéia de um direito "criado" pelo príncipe, segundo as necessidades dos tempos e baseado em técnicas mais modernas. Um direito concreto, adequado a seus fins, mas também mutável, não vinculado, ao qual o príncipe que o criou pode subtrair-se em qualquer caso. É na base deste direito que o príncipe proclama, ou faz proclamar por seus legistas, a independência. Prova evidente de que esta nova tendência se move já conscientemente no sentido de racionalizar e intensificar o poder e a relação fundamental em que o mesmo se desdobra: a relação entre autoridade e súditos.
A referida fórmula se articula efetivamente, no plano lógico, em duas reivindicações posteriores, também elas tomadas, embora em sentido inteiramente diverso, do antigo direito romano e que correspondem, em sua substância, às linhas de fundo do processo de formação do Estado moderno, através da consolidação da autoridade para fora e também dentro do "território" no qual surge. Supremacia imperial e papal, de uma parte, e participação dos poderes locais (consilium), de outra, são os dois obstáculos que se entrepõem para definição do poder monocrático do príncipe. Contra o primeiro obstáculo, o poder monocrático se proclama "superiorem non recognoscens" e "imperator in regno suo", negando qualquer forma de dependência tanto em relação ao imperador quanto em relação ao Papa. Contra o segundo, em concomitância com a substituição sempre mais convincente do direito "criado" pelo direito "achado" e com a crescente exigência de estabelecer e manter a paz territorial, se afirma o princípio através do qual "quod principi placuit legis habet vigorem".
Neste ponto, o Absolutismo do poder monárquico é alcançado, ao menos em teoria, na medida em que o príncipe não encontra mais limites para o exercício de seu poder nem dentro nem fora do Estado nascente. Ele não é mais súdito de ninguém e reduziu a súditos todos aqueles que estão debaixo de suas ordens. Delineou-se, na verdade, em seus traços essenciais, o novo e indiscutível princípio de legitimidade do príncipe no Estado: o princípio de soberania, a "summa legibusque soluta potestas", da qual no último quartel do século XVI Bodin deu a sistematização teórica definitiva.
A redução do Absolutismo aos seus referentes jurídicos, todavia, se esgota o aspecto semântico do problema e serve para descrever boa parte da sua história, não basta para delinear completamente a mudança profunda a que, no âmbito da experiência política ocidental, o Absolutismo corresponde. Passando também através do filtro jurídico, mas investindo problemáticas e convicções bem radicadas e envolventes, se completou, na verdade, entre os séculos XIII e XVI, uma das maiores revoluções culturais que o Ocidente conheceu.
IV. A-.— Se secularização significa perda progressiva de valores religiosos (cristãos) da vida humana, em todos os
4 ABSOLUTISMO seus aspectos, o Absolutismo significa, também e sobretudo, separação da política da teologia e a conquista da autonomia daquela, dentro de esquemas de compreensão e de critérios de juízos independentemente de qualquer avaliação religiosa ou moral. Deste ponto de vista, entram certamente na história do Absolutismo, como doutrina política, pensadores e movimentos que debaixo de um aspecto estritamente técnico dele seriam excluídos pela pouca atenção dada aos elementos jurídico-institucionais, que fazem do Absolutismo um fenômeno concretamente constitucional.
Deixando de parte as passagens através das quais se realizou a "desmoralização" da política e que contribuíram para o surgimento do "espírito laico", dentro de um sistema prevalentemente antitomista, um dos pontos de chegada do processo é representado, sem a menor sombra de dúvida, pela obra de Niccolò Machiavelli, apesar da posição equívoca que o mesmo mantém em relação aos dois extraordinários fenômenos histórico-políticos que se estavam preparando e realizando em seu tempo: o surgimento da Reforma religiosa e a construção do moderno Estado institucional. Na verdade, a comparação de Maquiavel com o Absolutismo está ainda ligada essencialmente aos esquemas tradicionais; a ordem absoluta, comparada com a civil, é para ele sinônimo de tirania, de ilimitado e incontrolado poder. Por outra parte, o seu príncipe corresponde, embora com toda a cautela e ajustamento das condições necessárias, àquele modelo, em função da única coisa que no fundo lhe interessa: elevar o poder até o ponto central se não único da experiência política e elaborar critérios e normas de comportamento político avaliados segundo estes fins, eliminando nele qualquer elemento que manche a pureza da relação que deriva da obrigação política rigorosamente formulada em seus termos terrenos, concretos, efetivos e reais. Se, na verdade, as fórmulas de Maquiavel aparecem historicamente muito rígidas e circunscritas, isso é devido unicamente ao pesado condicionamento dos meios políticos italianos do qual ele não pôde libertar-se e, em parte, também, ao significado que ele, mais ou menos conscientemente, atribuiu à sua obra principal Il Príncipe, que é exatamente um tratado sobre o poder e não sobre o Estado.
Para demonstração da complexidade e da globalidade assumida pelo fenômeno de absolutização da política, no qual se inclui o Absolutismo como realidade histórica, e do qual Maquiavel foi certamente o expoente mais importante, não se pode esquecer outro filão através do qual se concretizou a contribuição estritamente religiosa (cristã) para a separação entre política e moral, mesmo que isso se verifique através de uma recuperação radical da outra dimensão, que 6 precisamente a religiosa e que representa a contestação ao tomismo dentro da Igreja. Trata-se, naturalmente, da Reforma Protestante, cuja contribuição para o reforço do poder monárquico em sua dimensão institucional é inegável, quer no plano teórico, quer no plano prático, não apenas nos territórios germânicos, onde intervieram também motivos históricos contingentes, mas também nos principais países europeus, há muito tempo preparados para a concentração e racionalização monárquica, como é o caso da Inglaterra e da França.
De tal contribuição vale a pena lembrar não apenas o assunto da não-positividade da vida terrena para a vida do além e a conseqüente desvalorização de todo o esforço inclusive político fora daquele — eminentemente burocrático, de serviço — do príncipe, mas também o conseqüente e estreitíssimo vínculo de obediência do súdito à autoridade e ainda, também, pela modernidade e repetido sucesso da justificação, a legitimação do poder absoluto em termos de mero "bonum commune", entendido este último em sentido especificamente material, de segurança, paz, bemestar e ordem.
Todos estes motivos, os de Maquiavel e os da
Reforma Protestante, confluíram facilmente para as doutrinas políticas do Absolutismo que se desenvolveram entre os séculos XVI e XVIII, tanto para as de conteúdo imediatamente operacional, coletadas e misturadas dentro do gênero literário da chamada "razão de Estado", como para as de fundo mais abertamente teórico e sistemático dos grandes autores do Absolutismo, como Jean Bodin ou Thomas Hobbes.
Os seis livros do Estado do primeiro representam certamente o projeto mais convincente saído do movimento dos políticos, no cenário do século XVI, em resposta a uma situação interna da França gravemente deteriorada, se pensarmos que a longa caminhada realizada pela monarquia em direção a uma gestão centralizada e racional do território unificado tinha sofrido uma pausa e um regresso surpreendentes, em nome de uma contraproposta religiosa atrás da qual se escondia uma estranha mistura de antigos interesses feudais e de novos interesses burgueses, talvez ainda não conscientes, em luta com as prerrogativas preponderantes e as aspirações da alta nobreza dos Grandes do Reino. Que a vitória tenha sorrido aos politiques, em nome do novo princípio, polemicamente atribuído a eles por seus adversários, de "estat, estat; police, police", é altamente significativo. Quem venceu, de forma aberta, foi na verdade o Estado e a política, encarnados, um e
ABSOLUTISMO 5
potestas", desdobrada essencialmente no "não estar
de nenhuma forma sujeito às ordens de outro e (no
outra, na figura do príncipe, mas levados a uma unidade teórica, graças a Bodin, no princípio de legitimação da soberania, "summa legibusque soluta poder) dar leis aos súditos e cancelar ou anular as palavras inúteis da lei, substituindo-as por outras, coisa que não pode fazer quem está sujeito às leis ou a pessoas que exerçam poder sobre ele" (Os seis livros do Estado, Livro I, capítulo VIII). Fica, certamente, o limite da "lei natural e divina", mas é um limite, além de dificilmente sancionável, bastante abstrato para não atingir os problemas inerentes aos concretos negócios do Governo. Por outro lado, a sua inderrogabilidade serve a Bodin para defender a "derrogabilidade" das "leis ordinárias", apoiando-se numa passagem das "leis decretais". Permanece ainda a fronteira daquelas "leis que dizem respeito à própria estrutura do reino e à sua ordem básica", embora até ela encontre uma explicação totalmente convincente nos termos do Absolutismo que está mais dentro da lógica e da força interna do Estado do que na figura pessoal do monarca, na medida em que "essas leis estão ligadas à coroa e a elas inscindivelmente unidas" (ibidem). Na verdade, haveria ainda uma última fronteira que seria decisiva e poria em jogo o conceito de soberania se fosse verdadeiramente vinculante. É aquela que deriva do juramento do príncipe no que toca ao respeito das "leis civis" e dos "pactos" estipulados entre ele e seus súditos (sobretudo, com as assembléias dos grupos representativos). É um caso que Bodin encara com uma série ilimitada de distinções e de exemplos históricos, para em seguida resolvê-lo definitivamente, recorrendo a um expediente final: a decisão no caso de exceção diz respeito ao príncipe "conforme as circunstâncias, os tempos e as pessoas o exigirem". Fica assim estabelecido definitivamente "que o mais alto ponto da majestade soberana está em dar a lei aos súditos, tanto no seu aspecto geral como em seu aspecto particular, sem necessidade de seu consentimento" (ibidem). A questão do recurso ao expediente final foi recentemente retomada por Carl Schmitt como verdadeiro traço da soberania.
Mais oportuna e clara ainda é a argumentação apresentada por Hobbes, três séculos mais tarde, em defesa do poder absoluto. Isso tornou-se mais inquietante pelo fato de a grande complexidade dos problemas o ter constrangido a deixar o caminho sólido de Bodin e dos politiques que tinham essencialmente em mente a constituição funcional do poder, em termos de eficiência e de ordem, limitandose a recorrer apenas à lógica abstrata e instrumentalmente neutra do direito. Numa situação política certamente mais avançada, que já havia presenciado a afirmação do poder monárquico e que estava vivendo a áspera contestação por parte de forças bem mais homogêneas e consolidadas na defesa dos novos interesses econômicos, bem diferentemente daquilo que tinha acontecido na França durante o século anterior, Hobbes foi obrigado a percorrer o único caminho disponível para restabelecer a ligação entre soberania (reivindicada de maneira decisiva e tradicional pela monarquia Stuart) e direito (o direito dos centros de poder local, do Parlamento que os congregava, da gentry que começava a exprimi-los em nível de classe) e para fundar uma legitimidade real: o engajamento dentro de um sistema jurídico reconhecido universalmente. Isso existia no direito natural moderno que, depois de ter sido utilmente empregado no decurso do século XVI como instrumento racional para resolver questões importantes ou muito originais, encontrou aplicação, graças a Hobbes, na definição teórica do poder, da soberania e do Estado. As questões específicas a que foi aplicado esse direito foram aquelas que derivaram de circunstâncias próprias de novos países ultramarinos e questões .de direito internacional. Após o grande quadro traçado por Bodin para o Estado, este foi reduzido em sua última essência ao "animal artificial", ao "autômato", ou seja, a "um homem artificial, ainda que de maior força e estatura do que o homem natural, concebido para proteção e defesa deste" (Leviatã, Introdução).
Desta forma, o Absolutismo que caracteriza o poder do Estado nada mais é do que a projeção do Absolutismo natural da relação exclusiva existente de homem para homem e o refúgio natural das conseqüências mortais do inevitável conflito no qual os homens vivem em Estado de natureza. A legitimação que daí resulta é a mais radical jamais concebível, pois que afunda suas raízes na própria natureza humana e na "analogia das paixões" próprias do homem individual. Dessa forma, finalmente, Hobbes complementa a revolução de Maquiavel, fundamentando o Absolutismo da política no Absolutismo do homem e fundando a brutalidade necessária do poder no Estado na simples consideração de que este é uma criação artificial do homem a quem ele recorre para moderar na história a tragicidade do seu destino de lupus, que não pode ser senão a morte. O raciocínio é elementar: as paixões humanas, naturais e prejudiciais, não são pecado senão a partir do momento em que uma lei as proíbe; mas a lei deve ser feita e para esse fim deve ser nomeada uma pessoa dotada de autoridade. Injustiça, lei e
6 ABSOLUTISMO poder são três anéis da mesma cadeia lógica que procura permitir a sobrevivência artificial do homem.
homem artificial, se transforma em deus mortal, "
Em conclusão, também para Hobbes, a essência da soberania está no Absolutismo e na unicidade do poder, de tal forma que as vontades humanas individuais estejam subordinadas a uma só vontade: "Isto é mais do que um consenso ou um acordo: é uma unificação de todas as vontades numa mesma pessoa, feita por meio de um pacto de cada homem com cada homem..." (ibidem, capítulo XVII). O Estado, de uma pessoa, de cujos atos cada indivíduo de uma grande multidão, com pactos recíprocos, se fez autor, a fim de que possa usar a força e os meios de todos eles, quando achar oportuno, para a paz e defesa comum" (ibidem).
O fato de a expressão excelente da soberania residir no poder legislativo deriva das premissas do próprio texto de Hobbes. Só o direito positivo sabe desalojar as paixões humanas e impedi-las positivamente através de sanções. Nesse sentido, o direito positivo não é mais do que um mergulho necessário, artificial e racional, dentro do direito natural, cujas leis eram continuamente violadas, no Estado de natureza pelas paixões. O Estado feito à semelhança do homem, mas quase-deus, exprime fundamentalmente, para Hobbes, para além do Absolutismo político, o próprio Absolutismo do homem, em suas paixões e em seu heroísmo. A sua grande essência inventiva, que reside na abstração do poder numa vontade artificialmente unificada, é o instrumento racional com que o homem salva a própria concretude: a vida. No Estado, o homem se salva, não se perde.
Paradoxalmente, é este o resultado final a que conduz o Absolutismo político: a garantia da liberdade humana — aquele tanto de liberdade que é compatível com a compreensiva necessidade da política —, agora definitivamente reduzida à esfera autônoma de relações humanas, sem justificações ou apelos de tipo transcendente. A partir de Hobbes, será dentro da realidade do poder, especificamente dentro da figura abstrata mas poderosíssima do Estado, que se desenvolverá o processo de alargamento e de consolidação desta garantia. Os modelos posteriores, tanto os de tipo constitucional quanto os de tipo absolutista e iluminista, como ainda os mais modernos do Estado de direito e do Estado social, não serão capazes de sair da rígida relação-separação em que o Absolutismo, mediante o recurso à soberania, havia fundado a própria obrigação política: aque- la que existe entre autoridade e súdito. Só no âmbito desse dualismo e na delimitação precisa das respectivas competências é possível, por um lado, conhecer as fronteiras exatas, por mais amplas e extensas que sejam para Hobbes, do poder e, portanto, limitá-lo de alguma forma e, por outro, estabelecer e defender o âmbito de independência e autonomia individual, mesmo quando se trata apenas do espaço interior apolítico de Hobbes.
O Absolutismo político, na realidade, deu respostas bastante unilaterais a estes problemas no campo histórico-constitucional. Com isso dilatou exageradamente um pólo do dualismo — o pólo autoritário. Por outro lado, ele fixou o princípio da contraposição e a necessária premissa da sua possível regulamentação.
Isto permite-nos, finalmente, estabelecer uma distinção indiscutível de princípio entre Absolutismo e totalitarismo. Este último consiste precisamente na identificação total de cada indivíduo com todo o corpo político organizado e mais ainda com a própria organização desse corpo. Isso pode naturalmente acontecer nos dois sentidos implícitos do dualismo autoridade-súdito. Mediante a desmedida dimensão do pólo autoritário, que chega a compreender em si todo o aspecto e momento da vida individual, reduzindo o aspecto privado a simples elemento constitutivo da sua própria estrutura organizacional ou, então, através da absolutização da presença individual, numa contínua e global participação do homem na política. Nos dois casos, dar-se-ia a absoluta politização da vida individual, numa perspectiva dramaticamente alienante ou fascinosamente liberante, mas chegando, num ponto, ao mesmo resultado: a liberação dos limites da política, a sua totalização, e, portanto, a perda de sua autonomia em nome de uma hegemonia absoluta em torno de qualquer aspecto da vida humana, que a subjugaria inevitavelmente de novo, com escolhas e opções prejudiciais de tipo transcendente.
Trate-se de um totalitarismo autoritário e tecnocrático ou então de um totalitarismo democrático e humanístico, certamente os módulos de organização e sobretudo os culturais e existenciais em que ele é concretizado seriam necessariamente diferentes daqueles a que a experiência constitucional ocidental moderna nos habituou. Em todo caso e por mais absurdo que pareça tratar no plano conteudístico das duas possíveis linhas desse totalitarismo, parece necessário tomar consciência das implicações e das conseqüências que as duas comportam, dentro da convicção, sempre provável, de que a idade do totalitarismo já começou.
ABSOLUTISMO 7
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Abstencionismo.
Este termo é usado essencialmente para definir a não participação no ato de votar. Pode, todavia, compreender a não participação num conjunto de atividades políticas, conquanto, em suas formas mais acentuadas, a não participação possa ser definida como apatia, alienação, e por aí além. Como muitas das variáveis ligadas à participação eleitoral, o Abstencionismo é de fácil avaliação quantitativa. É, com efeito, calculado como percentual daqueles que, tendo direito, não se apresentam às urnas. É diferente o caso dos que, apresentando-se, deixam a cédula eleitoral em branco ou, deliberadamente, a anulam de diversas maneiras. Embora tanto os que não se apresentam às urnas como os que se manifestam mediante voto não válido pretendam expressar desafeição ou desconfiança, ambos os fenômenos são considerados como analiticamente distintos.
Em geral, as variáveis que influem na predisposição à participação política de sentido amplo influem também positivamente na participação eleitoral. Pode-se dizer, ao contrário, que os abstencionistas são, do ponto de vista sociológico, com poucas diferenças de um país para outro e salvo algumas exceções (por exemplo, a de abstencionistas voluntários e "resolutos" como os peronistas argentinos, sempre que se sentiam discriminados, ou os radicais italianos nas eleições administrativas de 1980 e 1981), um grupo de indivíduos com características relativamente definidas: antes de tudo, baixo nível de instrução; em segundo lugar, de sexo feminino; em terceiro, de idade avançada ou então muito jovem. De forma análoga à de qualquer outra variável, a instrução, ou, melhor, a carência de um adequado nível de instrução, influi negativamente na participação eleitoral. Contudo, tem sido observado que, se um indivíduo começou a participar nas eleições porque "mobilizado", por exemplo, por um partido ou por circunstâncias excepcionais, a guerra, a depressão, é provável que continue "participante", não contando seu nível de instrução.
As taxas de Abstencionismo variam consideravelmente de país para país e de uma consulta eleitoral para outra. As mais elevadas se encontram, no que toca a regimes democráticos, nos Estados Unidos: nas eleições presidenciais, o Abstencionismo ultrapassou, na década de 70, 45%; nas eleições para o Congresso, vota atualmente menos da metade dos que teriam direito, embora haja acentuadas diferenças entre um Estado e outro e entre as diversas eleições. As taxas mais baixas se encontram, em ordem gradual, na Austrália, Holanda, Áustria, Itália e Bélgica, sendo, nas eleições políticas do segundo pósguerra, inferiores a 10%. Em média, as taxas de Abstencionismo nos regimes democráticos giram em torno de 20%, mas há sintomas que indicam um ligeiro crescimento no percentual de eleitores que desertam voluntária e deliberadamente das urnas.
As causas do Abstencionismo são múltiplas.
Importantes, mas certamente não decisivas para a explicação das altas taxas que se registram em alguns países, são as normas que regulam o exercício do direito ao voto. A facilidade ou não de inscrição nas listas eleitorais — automática em alguns casos, deixada em outros ao potencial eleitor — e a obrigatoriedade ou não de votar (na Austrália, por exemplo, o voto é obrigatório; na Itália existe uma sanção de caráter administrativo, a inscrição "não votou" no certificado de bom comportamento) influem, como é óbvio, no percentual de eleitores que se dirigem às urnas. Tem-se observado, aliás, que nem mesmo a queda dos requisitos mais onerosos fez com que aumentasse o percentual de eleitores no contexto norte-americano. Mais: de um modo geral, nota-se que a expansão do corpo eleitoral, qualquer que seja a razão (sufrágio universal masculino, extensão do voto às mulheres, às minorias, diminuição do limite de idade), provoca uma queda nas taxas de participação, ao inserir no corpo eleitoral indivíduos ainda não habituados a votar. Normalmente,
8 ABSTENCIONISMO porém, superada a fase de "aprendizagem", as taxas de Abstencionismo tendem a decrescer rapidamente. Mas tal não aconteceu nos Estados Unidos.
Alguns autores buscaram por isso as causas do
Abstencionismo em dois grupos de variáveis: de um lado, em variáveis individuais, psicológicas; do outro, em variáveis de grupo, políticas e sistemáticas. Para que o Abstencionismo não cresça, é preciso, atendendo ao primeiro conjunto de variáveis, que os novos eleitores tenham interesse pela atividade política, possuam boa informação política e se mantenham "eficazes", ou seja, capazes de influir no resultado das competições eleitorais. Como os indivíduos admitidos à participação eleitoral estão muitas vezes escassamente interessados na política, estão pouco informados e são "ineficazes" (homens antes excluídos por causa do seu analfabetismo, mulheres sem experiência política anterior, minorias subalternas — uma exceção, os jovens da década de 70, já "automobilizados", mas talvez em fase de refluxo, e com alto nível de instrução), a taxa de Abstencionismo crescerá.
Quem atende às variáveis de grupo, tanto políticas como sistemáticas, buscará uma explicação do eventual crescimento do Abstencionismo sobretudo em três fenômenos: antes de mais, no tipo de consulta eleitoral; em segundo lugar, na competitividade das eleições (ou seja, na importância do risco e na incerteza do êxito); enfim, na natureza do sistema partidário e das organizações políticas (grau de presença e de assentamento social).
Os dados são concordes em indicar um
Abstencionismo seletivo do eleitor que vota, em percentuais mais elevados, nas eleições consideradas mais importantes, mais nas eleições políticas, portanto, que nas administrativas (nos Estados Unidos, é maior a votação nas eleições presidenciais que nas do Congresso; na França, é maior no segundo turno, ou seja, no da decisão, que no primeiro). É o caso da Itália; mas aqui é preciso acrescentar uma participação em declínio, isto é, um crescente Abstencionismo nas consultas por referendum (de 1,9%, em 1974, a 18,8%, em 1978, e 20,4%, em 1981, com aumento também de cédulas brancas e nulas).
A outra causa sistemática do Abstencionismo, a não competitividade das eleições, é de mais difícil verificação. Muitas vezes, os eleitores poderão aduzir a pouca diferença dos programas dos partidos ou das posições dos candidatos como causa da sua não participação (o que é mais freqüente nos sistemas bipartidários). Ou também positivamente: a vitória de um ou de outro não influirá negativamente nas suas preferências.
recursos e expectativas. Ao contrário, porém, o elevado nível do reecontro político e as fortes diferenças programáticas poderão fazer diminuir o Abstencionismo, mobilizando eleitores aliás não disponíveis. Os casos italiano e francês parecem seguir esta direção; o caso estadunidense, de que possuímos uma massa de dados sem igual, caminha no outro sentido.
Enfim, a explicação mais comumente apresentada e da maneira talvez mais convincente é a de que, onde os partidos estão bem organizados, capilarmente presentes e muito ativos, a taxa de Abstencionismo mantém-se muito moderada; onde eles estão em crise, sua capacidade de mobilização e conquista do eleitorado se esvai e o Abstencionismo cresce, crescendo ainda mais se, como ocorreu nos Estados Unidos nos anos 60, sua crise for contemporânea à expansão do eleitorado potencial. Não inserido no circuito da política organizada, este eleitorado depressa se acolhe ao Abstencionismo e, se não recuperado com o andar do tempo, se perpetuará como um eleitorado abstencionista crônico. Já que, em geral, parece ter de se contar com uma diminuição da atração dos partidos de massa e das organizações políticas que propendem à participação eleitoral, a tendência futura mais provável é a do crescimento do Abstencionismo.
Que efeitos produz o Abstencionismo no funcionamento dos regimes democráticos? Em primeiro lugar, não são poucos os que pensam que altas taxas de Abstencionismo constituem uma deslegitimação, atual ou virtual, dos governantes, da classe política e até mesmo das próprias estruturas democráticas. Se democracia é participação dos cidadãos, uma participação insuficiente debilita-a. Em segundo lugar, quem aceita uma visão mais desinteressada do problema da legitimidade dos regimes democráticos acentua, em vez disso, a necessidade de se levar em conta a "produção" do regime. Se os abstencionistas constituem um grupo, não só sociologicamente diverso de quem vota, mas também diverso em termos de preferências políticas, sua abstenção tornará difícil (e não essencial) às autoridades, aos governantes, serem sensíveis às exigências não expressas. Por isso a produção legislativa, a distribuição dos recursos, as opções globais do sistema premiarão os que participam em prejuízo dos que se abstêm, o que pode assumir aspectos de particular gravidade, se os abstencionistas pertencerem a grupos sociologicamente "subprivilegiados". Em parte é assim, em parte não: os abstencionistas só em parte são diferentes, particularmente nos Estados Unidos, daqueles que votam.
ABSTENCIONISMO 9
Mantém-se, todavia, em pé o problema dos regimes democráticos onde um alto percentual de eleitores resolve não "se incomodar" por influir no resultado das competições eleitorais. Na realidade, só em escassa medida se pode pensar que o sistema, em seu conjunto, não fica com isso "deslegitimado". Além disso, a grande massa dos abstencionistas e eleitores flutuantes fica à mercê dos apelos dos demagogos que prometem limpar a área e criar um regime de autêntica participação. A mobilização dos abstencionistas desde o alto é, em conclusão, um perigo real em situações onde a taxa de Abstencionismo cresce sem solução de continuidade.
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Ação Católica.
O decreto do Concilio Vaticano Il "Apostolicam actuositatem" a propósito da Ação católica, isto é, das "várias formas de atividades e de associações que, mantendo uma mais estreita ligação com a hierarquia, se ocuparam e se ocupam com finalidades propriamente apostólicas", lembra a definição que mais comumente, no passado, era a elas atribuída: "colaboração dos leigos com o apostolado hierárquico" (cap. 20). Trata-se de uma fórmula cujas origens remontam ao pontificado de Pio XI (1922- 1939). Ela aparece, de fato, pela primeira vez, com palavras ligeiramente diferentes ("participação dos leigos na missão própria da Igreja"), numa carta do então secretário de Estado cardeal Gasparri aos bispos italianos, de 2 de outubro de 1922. Inserida na sua forma definitiva nos estatutos de Ação católica italiana de 1931, será mantida também pelos sucessivos pontífices. Para captar seu significado é preciso considerar o contexto doutrinai em que ela amadurece, focalizando, em primeiro lugar, a acepção que aí tem o termo "apostolado". Este indica um projeto totalizante sobre o homem e a sociedade: não somente reconduzir à fé cada indivíduo que dela se tenha afastado, mas também recriar um organismo social baseado em todos os níveis, inclusive no nível da organização civil e econômica, na doutrina da Igreja católica. Não há distinção, nessa perspectiva, entre "religioso" e "político": os dois planos convergem num modelo ideal de sociedade hierarquicamente estruturada em que a Igreja — o Papa em primeiro lugar e os bispos dele dependentes — reveste a função de ordenadora última, como tal reconhecida pelo Estado que, em conseqüência disso, recebe dela a sua legitimação. Trata-se de uma concepção, largamente difundida nos ambientes católicos europeus desde a primeira metade do século XIX, que teve origem na polêmica ultra-montana e intransigente contra o liberalismo. O termo Ação católica (ou "ação dos católicos") começa a ser usado, juntamente com o de "movimento católico", a propósito das organizações de leigos militantes que se formaram em diversos países da Europa (as primeiras foram as da França, da Bélgica e as das regiões de língua alemã), em aberta oposição ao Estado liberal. Na Itália esse termo é usado para indicar o variado conjunto de associações e instituições chefiadas, desde 1874, pela Obra dos Congressos. Já no início da década de 60 a revista dos jesuítas "La Civiltà Cattolica" elabora uma precisa definição do papel que o laicato militante tem no Estado moderno: ele deve assegurar à Igreja a tutela que os Governos liberais lhe negam, defendê-la de seus ataques e influir, através de sua ação, para reconduzir a sociedade, em seus vários níveis, à sua imagem originária de "societas christiana". A intervenção política é um dos muitos instrumentos de que a Ação católica tem o direito e o dever de servir-se, em obediência às indicações da hierarquia; é um direito que somente na Itália sofre limitações no que diz respeito à participação dos católicos nas eleições políticas e isto com o intento de tornar mais eficaz o protesto contra a anexação dos Estados pontifícios, que se concluiu com a tomada de Roma em 1870. O termo de Ação católica foi ,dado pelo Papa Pio X, na Itália, a uma organização particular, após a dissolução, por ele decretada, da "Opera del Congressi" (1903). A Ação católica, que sucedeu a esta obra, não é mais um movimento que nasce da iniciativa autônoma do laicado, mas uma organização promovida pela hierarquia e por ela diretamente controlada. Inicia com Pio X uma série de revisões estatutárias que acentuam cada vez mais seu caráter centralizador, tornando-a um instrumento dócil que a Igreja pode utilizar no âmbito de sua estratégia geral de "recristianização" da
10 AÇÃO CATÓLICA sociedade. A Ação católica italiana adquire com isso uma fisionomia que a diferencia sensivelmente, sob o perfil organizativo. das existentes em outros países, especialmente da francesa, articulada em movimentos de categoria dotados de ampla autonomia. Deve-se, também, considerar o caráter de "modelo exemplar" que o papado atribuirá cada vez mais à organização da ACI, como aquela que melhor realiza o ideal do empenho do laicado nos confrontos com a Igreja e a sociedade. Intervindo diretamente na organização do laicado militante e dando um reconhecimento especial a uma associação específica, a Santa Sé intende também controlar o surgimento, no âmbito católico, de movimentos que, como a democracia cristã de Murri, coloquem, embora parcialmente, em discussão o seu projeto de sociedade e reivindiquem um espaço autônomo de decisão para o laicado na área política. A definição que Pio XI deu de Ação católica sublinha a função subalterna que ela tem em relação à hierarquia, com cujo apostolado "colabora" em qualidade de mero executor. No quadro do acordo entre a Igreja e o fascismo sancionado pelos tratados de Latrão, a Ação católica ganha o espaço de formação de um pessoal capaz de influir nos vários níveis do Estado. Com a reconstituição da ordem democrática, no fim da Segunda Guerra Mundial, a Ação católica não se limitará a fornecer quadros ao partido católico e a assegurar-lhe o seu máximo apoio eleitoral, mas exercerá sobre este partido a função de instrumento de pressão. Durante o pontificado de Pio XII. não obstante se afirme a natureza puramente religiosa das funções da Ação católica, não muda o quadro tradicional de referência, isto é, a perspectiva do retorno da sociedade à imagem unitária da "societas christiana", para cuja atuação a Igreja privilegia o instrumento da gestão direta do poder político por parte dos católicos. O pontificado de João XI e o Concilio Vaticano Il marcam, no que concerne às linhas do discurso pastoral, um decisivo momento de mudança. O tema da "opção religiosa", que se tornou central na Ação católica do após-concílio, representa um distanciamento da concepção do apostolado acima mencionada e embora parcialmente, um reconhecimento da autonomia da ação política em relação aos princípios que determinam a experiência do cristão. Como isto se concretizou, qual a relação entre a persistência de formas de intervenção e de presenças típicas do passado e entre o surgimento de uma nova concepção de Ação católica, fica ainda, em grande parte, um problema aberto.
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Administração Pública.
I. AS ATIVIDADES ADMINISTRATIVAS. — Em seu sentido mais abrangente, a expressão Administração pública designa o conjunto das atividades diretamente destinadas à execução concreta das tarefas ou incumbências consideradas de interesse público ou comum, numa coletividade ou numa organização estatal.
Do ponto de vista da atividade, portanto, a noção de Administração pública corresponde a uma gama bastante ampla de ações que se reportam à coletividade estatal, compreendendo, de um lado, as atividades de Governo, relacionadas com os poderes de decisão e de comando, e as de auxílio imediato ao exercício do Governo mesmo e, de outra parte, os empreendimentos voltados para a consecução dos objetivos públicos, definidos por leis e por atos de Governo, seja através de normas jurídicas precisas, concernentes às atividades econômicas e sociais; seja por intermédio da intervenção no mundo real (trabalhos, serviços, etc.) ou de procedimentos técnico-materiais; ou. finalmente, por meio do controle da realização de tais finalidades (com exceção dos controles de caráter político e jurisdicional).
Na variedade das atividades administrativas (abstraindo-se o exame daquelas de Governo, que merecem consideração à parte), dois atributos comuns devem ser destacados; em primeiro lugar, o fato de essas atividades serem dependentes ou subordinadas a outras (e controladas por essas), as quais determinam ou especificam os fins a atingir (atividades políticas ou soberanas e de Governo); em segundo lugar, o de serem executivas, no duplo sentido de que acatam uma escolha ou norma anterior, e de que dão continuidade à
ADMINISTRAÇÃO PUBLICA 1 norma, intervindo para a consecução final de interesses e objetivos já fixados.
Tais atributos conduziram a que a Administração pública fosse identificada, • essencialmente, como uma função, ou como uma atividade-fim (condicionada a um objetivo), e como organização, isto é, como uma atividade voltada para assegurar a distribuição e a coordenação do trabalho dentro de um escopo coletivo.
No momento em que a exigência da distribuição e coordenação do trabalho administrativo assumiu relevo e dimensões sempre crescentes no decorrer da experiência dos ordenamentos estatais modernos e contemporâneos, de tal modo que deu origem ao aparecimento e ao desenvolvimento de estruturas específicas, o termo Administração pública, do ângulo de seus destinatários, passou a indicar o complexo de estruturas que, conquanto se encontrem em posições de subordinação diferentes, em relação às estruturas políticas e de Governo, representam uma realidade organizativa distinta daquelas.
Para a maioria dos estudiosos, as estruturas administrativas representam, mais do que tudo, o traço característico dos Estados modernos e contemporâneos, manifestando, quase fisicamente, sua presença no plano subjetivo. Constitui característica normal dessas estruturas o fato de se lhe ter destinado um pessoal escolhido por sua competência técnica, contratado profissionalmente e em caráter permanente (corpos burocráticos).
Entretanto, faz-se mister esclarecer que a
Administração pública não pode ser reduzida, como às vezes ocorre, ao perfil de suas estruturas; de fato, isso não permite explicar integralmente o fenômeno administrativo público, tal como ele se delineia, do ponto de vista histórico e comparado, mormente se se tem em mente que nem sempre existiram estruturas de tipo burocrático destinadas à execução de atividades administrativas e que, muitas vezes, existe continuidade ou identidade parcial entre as estruturas governativas e administrativas.
TIPOS DE ADMINISTRAÇÃO.— A variedade das funções a que se pode endereçar a ação administrativa' e a diversidade das atividades com que ela pode se manifestar aconselham que se assuma o ponto de vista mais abrangente de considerar a administração como atividade ou função necessária, semelhante à da política e à do Governo, em qualquer ordenamento geral ou especial.
Trata-se, mais propriamente, de considerar como dado constante de toda a coletividade estatal (como, aliás, de todo o grupo social organizado) a existência de um problema administrativo que tem ou pode ter soluções diversas, mesmo no plano organizativo em relação à variação dos três componentes principais e individuantes de cada sistema e tendo em vista, também, as características diferentes de cada país no plano social, econômico e cultural: tipo de instituições políticas e de Governo existentes; a relação entre estas e a Administração pública; e as finalidades tidas como metas ou objetivos de interesse público.
O exame do modo como se tem encarado e procurado resolver positivamente o problema administrativo, onde quer que se faça, com base nas três principais variáveis já lembradas, que escondem, de certo modo, os elementos fundamentais do fenômeno administrativo público — o elemento institucional, o organizativo e o funcional —, permite individualizar diversos tipos de Administração pública, tanto no decurso da evolução histórica como no confronto das diversas experiências nacionais.
Poderá aparecer, em particular, como os negócios da Administração pública seguem, pari passu, as formas de Estado e de Governo, tendo como manifestação específica, e não menos essencial, a organização e o equilíbrio exigido pelas circunstâncias. Será igualmente possível constatar, especialmente na época atual, a co-presença de diversos tipos de Administração pública dentro da própria coletividade estatal.
Em relação a cada tipo de administração é também possível elucidar como as instituições políticas e governamentais foram fortes e capazes de realizar ou mandar realizar os próprios objetivos.
Por outro lado, deve destacar-se também quanto a
Administração pública correspondeu, tanto no plano estrutural quanto no funcional, aos seus objetivos e como foi eficiente em atingi-los. Dentro desta relação que vê, numa posição de recíproca complementaridade e simultaneamente de contraposição, a função política e governamental e a administrativa, coloca-se uma das problemáticas vitais mais complexas e, parcialmente, insolúveis do nosso tempo.
Torna-se particularmente evidente que nela existem amplas estruturas burocráticas (como regra) , enquanto, na realidade efetiva, a relação institucional de dependência que a caracteriza pode apresentar valores, se não opostos, pelo menos profundamente divergentes daqueles que foram previamente estabelecidos.
12 ADMINISTRAÇÃO PUBLICA
O respectivo papel das estruturas políticas e administrativas tendem a uma troca recíproca ou a uma configuração baseada num equilíbrio substancialmente alterado. Daqui nasce outra temática, tipicamente sociológica, que caracteriza a Administração pública de hoje em diversos contextos institucionais dentro de uma variada tipologia: a do papel político desenvolvido de fato pelas estruturas burocráticas.
Para esquematizar sumariamente quais os tipos de administração que adquiriram maior importância nas formas de Estado e de Governo modernas e contemporâneas, tendo em vista particularmente as experiências italiana e brasileira, e sem pretender ilustrar na sua singularidade histórica as várias administrações nacionais dos dois países, convirá, antes de tudo, relembrar a formação das grandes monarquias da Europa continental.
Com o surgimento e o desenvolvimento de tais instituições de Governo monocrático e absoluto realiza-se, como é conhecido, um tipo de administração que representa, em certo sentido, a condição necessária para que os nossos poderes políticos possam afirmar-se, estabilizar-se e manterse.
A ação administrativa é essencialmente orientada, portanto, para a conquista dos meios indispensáveis à conservação e reforço do poder régio constituído. Pode pensar-se, dentro de tal perspectiva, que os primeiros setores administrativos a desenvolver-se são o setor militar e o financeiro e que, entretanto, se assiste ao progressivo monopólio da função jurisdicional do chefe soberano. A organização do Governo régio tende, além disso, a articular-se e a difundir-se de modo uniforme por todo o território, através da criação de estruturas de administração periférica, cujos responsáveis estão vinculados, por delegação ou por representação do Governo central, enquanto as funções administrativas do Governo autônomo local, especialmente urbano, se vão degradando.
No que diz respeito a tais finalidades de base e a tais modalidades de desenvolvimento, a ação administrativa se posiciona como com participação no exercício da autoridade soberana ou como autoridade soberana delegada. Neste sentido, a Administração pública se confunde com a atividade e o poder do Governo. Esta característica explicará notável influência sobre a sucessiva evolução do fenômeno da Administração pública.
No contexto, o elemento institucional tem prevalência sobre o organizativo e o funcional.
Estes se integram na fórmula unitária do serviço para o rei (ou para a Coroa). Tal fórmula contradiz só aparentemente a colocação dá administração como soberania delegada. O duplo aspecto do comando (para fora) e do serviço (para dentro) contribui também para lançar luzes sobre a posição especial do aspecto da organização que a Administração pública assume em relação ao poder político do Governo e de toda a coletividade. Faz-se uma nítida distinção, especialmente, entre as regras do ordenamento próprio da administração e as do ordenamento em geral. Isto tem muito que ver com as experiências estatais da Europa continental. A experiência anglo-saxônica é caracterizada por uma restrita área de atividades soberanas em sentido próprio e por uma subordinação geral das atividades públicas às normas do direito comum, sendo caracterizada também pelo respeito e pela utilização dos poderes políticos locais para as metas da administração.
A organização administrativa do Estado absolutista não tem, portanto, características estruturais autônomas em relação às da autoridade soberana. Todavia apresenta-se como um esquema de pessoas ligadas por vínculos de subordinação interna e privada ao soberano e, como já se disse, como organização ou administração privada da soberania.
À falta de características estruturais próprias típicas e autônomas por outra parte, a um período em que existe uma indistinção subjetiva das funções públicas, corresponde uma centralização que é avaliada antes de tudo no plano político. O problema administrativo é resolvido na homogeneidade institucional e política entre governantes e pessoal administrativo, com base na natureza das tarefas a executar, no modesto volume de recursos, na preparação técnica específica e na limitada necessidade de recorrer a estruturas burocráticas.
V. A ADMINISTRAÇÃO EMPRESARIAL. — É da transformação destas premissas ligadas entre si que derivam, já antes do advento do Estado de direito constitucional, importantes modificações que levam ao progressivo e impetuoso predomínio da organização, mesmo no âmbito da colocação que lhe foi dada originariamente.
Com a ampliação das tarefas públicas no campo das intervenções infra-estruturais, e dos serviços sociais e ainda no das atividades econômicas de base — fenômeno típico de uma variante do Estado absoluto seria o Estado policial —, emergem os traços de uma administração diversa cujos fins estão voltados para interesses coletivos, o que requer estruturas próprias e estáveis e ainda pessoal recrutado profissionalmente e tecnicamente
ADMINISTRAÇÃO PUBLICA 13 qualificado. E a partir daqui que nascem formas de organização autônoma, regidas por normas próprias e critérios internos de ação (especialmente no campo da contabilidade e das finanças), predispostas a atingir determinados objetivos de caráter produtivo: as empresas.
A administração que participa do Governo e à emanação da autoridade soberana se justapõe a administração empresarial, um módulo organizativo de grande interesse para as perspectivas atuais da Administração pública, conforme já, oportunamente, acentuaram muitos estudiosos.
Tal módulo organizativo comportava de fato a ruptura da continuidade estrutural entre Governo e administração e dava um relevo, à parte às responsabilidades decisórias próprias do Governo e também às de atuação e de gestão organizativa das mesmas. Isso teria podido assegurar um notável efeito classificador no momento em que o ato de administrar entrou, juntamente com outras funções públicas, no sistema do Estado constitucional de Governo parlamentar. Bem ao contrário, o modelo da administração empresarial foi baseado na proclamada necessidade de submeter todo o funcionamento do aparelho estatal ao controle do Parlamento através da responsabilidade das instituições ministeriais.
A .— Com o aparecimento dos regimes constitucionais, a administração foi subordinada à lei e inserida no chamado poder executivo estatal. Isto, porém, não fez senão dar uma roupagem formal mais atualizada ao que já era uma ordem conceituai e prática preexistente. Os novos princípios e os novos dispositivos institucionais agiram não no sentido da transformação mas no da limitação e controle da ação administrativa em relação ao público. A ação administrativa foi regulamentada quanto aos interesses e metas a perseguir e também quanto ao âmbito das suas possibilidades de intervenção, particularmente as do tipo unilateral e autoritário. Todavia, a intervenção foi configurada igualmente como manifestação de autoridade (legislativamente circunscrita) para satisfação de interesses próprios do titular da soberania (não do príncipe, mas da entidade estatal).
O momento de contato entre os dois campos separados da administração e da sociedade é traduzido através do ato administrativo, o qual fixa concreta e unilateralmente o interesse do Estado-pessoa, dentro dos limites do tato que a legislação permite e sem o qual, por outro lado, os remédios jurisdicionais aplicados não poderiam oferecer corretivos eficazes e exaustivos para tutela do interesse público a defender.
Desta maneira, o aspecto organizativo da administração torna-se prevalente. Enquanto assume seu próprio perfil estrutural, a administração conserva e reforça seus laços de dependência dos dirigentes políticos, de tal modo que, pode dizer-se, a administração não é mais do que o aparelho do Governo. As estruturas são ordenadas sobre o modelo ministerial e dentro de cada ministério as mesmas são articuladas de maneira a favorecer a direção e o controle quotidiano das atividades administrativas pelos chefes políticos. E sabido que, dentro das estruturas centrais e periféricas dos ministérios, a distribuição das tarefas administrativas se realiza progressivamente mediante a formação de uma escala de competência interna. Tal escala vai desde a competência geral à competência específica e comporta, no caso de competência de nível inferior (e dos titulares de cargos), a possibilidade de participação ou de substituição no exercício da competência de nível inferior.
Ao mesmo tempo, as diversas competências são individualizadas de modo que a cada uma delas corresponda a realização ou a preparação de uma ou mais atividades de execução normativa. Neste contexto, há a supressão conseqüente de qualquer responsabilidade direta por parte do pessoal administrativo que atua dentro das metas da organização. Disciplinando de modo uniforme a atividade ou o segmento de atividade confiado a cada uma das unidades organizativas, garante-se, por outro lado, um controle fácil e uma possibilidade de rápida agilização na transmissão das ordens e das diretrizes de cúpula, sempre que isso for necessário.
HIERÁRQUICA. — A organização ministerial de tipo hierárquico voltada para a acentuação da unidade e regularidade formal da ação administrativa move-se, na verdade, dentro de uma relação de relativo equilíbrio com os objetivos de ordem e disciplina inerentes à administração segundo a concepção dominante do Estado liberal. Por outro lado, essa organização representa, também, a negação destas exigências se se levar em conta a carga política implícita que ela supõe.
Enquanto se admite que a Administração pública deve atuar imparcialmente, cumprindo, de preferência, o mandado na lei, verifica-se, por outro lado, estar ela organizada de tal maneira que se torna facilmente permeável à interferência de partes. Esta profunda contradição não tardará a vir ao de cima, colocando, em termos
14 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA dramáticos, o problema da separação da esfera política da esfera administrativa. Entretanto, se se prescindir do aspecto da tutela jurisdicional, não serão alcançadas senão soluções parciais e impróprias, tendo em vista as causas de fundo que originaram o problema.
Quando se deveria dar um lugar distinto, respectivamente, às estruturas de Governo (e de seus órgãos auxiliares) e às estruturas administrativas, atribuindo a estas últimas uma configuração autônoma precisa (lembremo-nos dos órgãos e agências existentes no escalonamento hierárquico da Suécia e da América do Norte), verifica-se apenas a concessão de garantias para o corpo burocrático em contraste com a classe política dirigente, assim como a concessão de privilégios para a maioria dos servidores a ela subordinada, sem que as estruturas percam seu caráter uniforme e hierárquico.
A criação de garantias de Estado para os empregados, o crescimento numérico do corpo burocrático e, de um modo geral, o poder alcançado por este em relação à classe política (mesmo nos serviços a ela prestados nos partidos e por ocasião de eleições) representam fatores que contribuem para agravar as condições de irresponsabilidade prática de cada um e da organização em seu conjunto. Essa disparidade concorrerá, por seu turno, para enfraquecer mais o controle político até reduzi-lo a termos meramente fictícios, pouco ou nada ajudando na imparcialidade da ação administrativa.
Acrescente-se a isto a consideração de que nem se constituíram centros de governo autônomo regional e local (para uma distribuição vertical do poder político) nem se realizaram, a nível local, aquelas formas de autogoverno ou de auto-administração, próprias do sistema inglês de ordenação onde as funções estatais periféricas são entregues a órgãos eletivos. Em um e outro caso poderiam ser retomadas as condições de um decisivo controle político e de uma relação de responsabilidade mais direta entre administradores e administrados.
É sabido, por outro lado, que se assiste a uma progressiva absorção, por parte da órbita estatal, das atividades administrativas de interesse local dos municípios, das províncias e até dos Estados, nos países federados. Na Itália constata-se a repressão da autonomia política das províncias existentes no período fascista.
A mudança sucessiva das tarefas administrativas — conseqüência da consolidação do Estado social — pressupõe fundamentalmente os mesmos princípios que sustentavam a organização hierárquica tradicional como exigência de reforço das estruturas e das modalidades de ação relacionadas com os novos objetivos e com os fins da prestação dos serviços sociais e da gestão das atividades econômicas, e relacionadas também com a solução integrada dos problemas de desenvolvimento da sociedade e com a consecução efetiva dos resultados econômico-sociais visados.
Perante tais problemas, as estruturas atuais não possuem a capacidade de uma flexível e tempestiva adaptação. Por seu lado, a ação administrativa, se continuar centrada sobre atos e competências exatas, irá complicar-se para além do que é desejável no ponto de vista comportamental e terá efeitos paralisantes sobre a vida do país. Destarte, aquilo que deveria ser um tipo de organização realista e de eficiência administrativa terminará por ser um mecanismo de funcionamento baseado em regras ultrapassadas no tempo e apoiado em critérios de autodefesa e de auto-perpetuação desligados do contexto vivo da ação e das diretrizes do Governo.
EMPRESAS. — A crise da organização administrativa tradicional não se seguia, até agora, a criação de um modelo ou de um tipo alternativo de administração. A tendência atual, já iniciada tempos atrás, está voltada, de preferência, para a ruptura da unidade do sistema administrativo e para a introdução, em seu lugar, de uma pluralidade de tipos de administração, presentes no interior de uma mesma organização.
A primeira tendência alternativa a assinalar, enriquecida por vasta gama de manifestações concretas, estaria em evitar a organização ministerial. Respeitando a unidade do poder políticogovernamental, dentro da área da administração, verifica-se, desde o início do século, o recurso, cada vez mais generalizado, a órgãos e a empresas autônomas, ao mesmo tempo que, o Governo, pouco a pouco, mediante intervenção, anexa novos campos de ação e coloca novas exigências de promoção operacional nos diversos setores econômico-sociais. A organização interna de tais estruturas não se diferencia substancialmente da ministerial, da qual reproduz as principais disfunções sem assegurar as vantagens desejadas, seja em ordem a uma maior correspondência política, seja em ordem a uma maior eficiência administrativa.
O recurso a estruturas alternativas se amplia, pois (tornando-se com isto particularmente significativo). No emprego de formas organizativas próprias do mundo econômico e empresarial privado (em particular, as sociedades acionárias de
ADMINISTRAÇÃO PUBLICA 15 participação ou de direito público), primeiro para os grandes setores de economia de base e, depois, como aconteceu em tempos recentíssimos, para as atividades tecnologicamente sofisticadas ou complexas do ponto de vista organizativo (informática, técnicas e participação de programação organizativa, territorial e econômica, etc.). Tudo isto vem determinar, num quadro dominado por uma organização ministerial em ação, na forma acima descrita, juntamente com uma maior amplicidade e oportunidade da participação, ulteriores e não menos graves problemas sobre a organicidade da ação pública em seu complexo, assim como no que diz respeito às possibilidades de real direção e controle da mesma, seja por parte do Governo, seja por parte do Parlamento, seja ainda por parte da coletividade em geral.
PROGRAMAÇÃO. — O processo de desenvolvimento da tendência acima referida foi paulatinamente revelando a necessidade de enfrentar o problema administrativo dentro de uma perspectiva de caráter global mais ampla. Uma perspectiva que levasse em conta não apenas o modo de ser das estruturas burocráticas, mas buscasse também as soluções através da revisão do papel e da configuração de um lado, num confronto direto com as instituições políticas e governamentais, e; do outro, numa avaliação das instituições e das estruturas sociais como tais. Dada a variedade das atividades administrativas, que compreendem momentos funcionais diversos desde aqueles que são propriamente governamentais ou de órgãos auxiliares do Governo até os que são de prestação de serviços utilitários ou específicos, ambos configuráveis dentro de uma relação de complementaridade específica, existe a perspectiva de que os novos tempos exigirão que seja dada uma expressão adequada aos diversos momentos funcionais, incluindo o plano organizativo que deve olhar as características e os requisitos peculiares de cada servidor num ordenamento democrático.
Isto comporta uma mudança radical no modo de conceber e de colocar a ação administrativa. A verdade é que valorizando-se os diversos aspectos ou momentos funcionais, a ação administrativa deverá ser colocada numa relação imediata com os objetivos a atingir e com as instituições políticas e sociais, num quadro constante de interdependência entre escolhas e resultados.
É por este motivo que se assiste hoje a um processo de fragmentação que atinge a Administração pública. De uma parte, procura-se reconstruir as estruturas de Governo (tanto do centro como da periferia) no âmbito direto de responsabilidade das instituições políticas; de outra parte, procura-se vitalizar estruturas de gestão no âmbito direto de responsabilidade das instituições e dos grupos sociais. Segundo essa tendência, o conjunto das atividades administrativas deveria distribuir-se por todo o arco da organização políticosocial. O problema administrativo parece que poderia resolver-se superando as estruturas burocráticas, na prefiguração de dois tipos distintos de administração: a administração política, inserida nas novas estruturas de Governo, e a administração social, correspondente às estruturas de gestão, expressão do autogoverno das coletividades territoriais e pessoais que agem no seio da comunidade nacional.
A fim de que tal coisa possa realizar-se, parece que o primeiro problema funcional a ser reavaliado e reestruturado é o do Governo. Em dois sentidos: rompendo com o caráter unitário e centralizador que tradicionalmente arrasta consigo, e dotá-lo de adequadas modalidades de desdobramento. No primeiro ponto de vista é colocada em relevo a regionalização como processo comum em voga, tanto na Itália como na Europa. Tal regionalização pode fazer-se através da distribuição dos poderes do Estado e também através da coordenação dos poderes locais (é um modo de se retomar, atualizada, a fórmula dos Estados federados que tendem a assumir características afins aos Estados regionais). O segundo ponto de vista coloca em destaque o método da programação.
Já que as leis tendem cada vez mais a fixar os objetivos últimos e a deixar necessariamente amplo espaço para a ação executiva, compete a esta substancialmente determinar as próprias modalidades de participação no espaço e no tempo, fixando, ou melhor, projetando concretamente o programa a desenvolver. O ponto alto da ação do Governo está, portanto, na programação e no planejamento, os quais, embora não garantam mais, como acontecia na administração tradicional, a discriminação entre autoridade e liberdade, na medida em que primazia aos interesses das pessoas e dos órgãos públicos em relação aos interesses privados, estabelecem, entretanto, critérios e instrumentos para o cumprimento de objetivos comuns de relevância social, arbitrando e mediando entre uma pluralidade de interesses coletivos.
Daqui nasce particularmente a exigência (repetidamente presente na legislação) de dar amplo relevo ao processamento na fase de formação dos programas, na mira de favorecer a participação desses interesses e de obter uma ponderação conveniente por parte da administração política.
16 ADMINISTRAÇÃO PUBLICA
Os programas representam também o parâmetro de comparação e de colocação dos vários centros de Governo, respeitada a autonomia e a execução de cada um nos vários níveis e dimensões e as diversas responsabilidades políticas, como é o caso dos Estados com autonomia regional.
DA PROGRAMAÇÃO.— Dentro de um sistema de programas e de planos de atividades, públicas ou privadas, tomam posição particularmente importante outros momentos da ação administrativa, de tal modo que terminam por perder seu caráter de atuação imperativa de normas (estritamente públicas) para se tornar atividades de execução de tarefas programadas, quer se destinem à prestação de serviços a assessorias, quer se destinem à promoção, ao reequilíbrio ou à regulação exata de atividades econômicas e sociais. Isso deveria postular um emprego mais amplo de instrumentos privados e uma maior simplicidade no plano de processamento (salvo quando se tornar necessário garantir as exigências do contraditório) e no dos controles (podendo estes ser dirigidos não a cada ato singular, mas à atividade ou à gestão em seu todo).
Tudo isto tem implicações organizativas importantes: desenha-se, em especial, a necessidade de vitalizar estruturas gerenciais dotadas de importância especial em contraste com as estruturas de programação, dotadas de centros próprios de direção e de chefia. Além disso, essas estruturas gerenciais, reorganizando-se paralelamente às do Governo, segundo critérios de articulação territorial, podem ser obrigadas a reentrar facilmente na órbita dos poderes locais (mais precisamente na órbita do autogoverno local) e poderão adotar o controle sistemático ou mesmo a própria administração social das atividades e dos serviços prestados por parte dos diversos grupos sociais interessados. Neste sentido se coloca o processo em curso de transformação da administração escolar, sanitária, assistencial e previdenciária que vai dos modelos de organização setorial e vertical até os modelos de organização territorial e horizontal (distritos escolares, unidades sanitárias locais, unidades locais de serviços sociais). Análogas tendências podem destacar-se também nos campos da participação econômica (a agricultura, por exemplo).
A formação das duas figuras da administração política e da administração social não leva somente à superação da unidade e da uniformidade do sistema administrativo, com a conseqüente possibilidade de utilizar esquemas organizativos diferenciados e múltiplos centros de participação política e social, especialmente de caráter local. Ela comporta, também, uma transformação, em termos notáveis, do papel do corpo' burocrático, o qual, como detentor de autoridade e como guardião da lei, assume diversas conotações variáveis segundo as estruturas em que se insere. Na administração política se realiza um equilíbrio diferente entre direção política e pessoal profissional, na medida em que a ação programática postula um intercâmbio entre a assessoria dos técnicos para a formulação das deliberações políticas e a direção e a participação dos políticos na orientação da ação dos técnicos. Este intercâmbio leva-nos a afirmar que o pessoal profissional se torna mais do que tudo um participante das decisões político-administrativas. Tratando-se, porém, das estruturas gerenciais, o pessoal profissional atua como responsável pelas atividades programadas e também da gerência destas numa relação direta entre estrutura administrativa e uso social, com base num constante controle e estímulo da parte de grupos e classes sociais para a consecução eficaz e objetiva dos resultados prefixados. Em ambos os casos, o burocrata aparece como um especialista em condições de utilizar as contribuições de outras áreas e das técnicas de organização ou de contribuir para a formação das decisões programáticas próprias das estruturas políticas do Governo e de prover a condução integrada das atividades de gestão, segundo as atuais tendências de desenvolvimento da Administração pública.
BIBLIOGRAFIA.- F. B,Pubblica amministrazione e diritto amministrativo, in '"Jus", 1957; Id., La scienza dell'amministrazione come sistema, in Problemi della pubblica Amministrazioae, 1, Bologna 19S8; B. C,The Profession of Government, The Public Service in Europe. A& U,L1959; Theory and Practice of Public Administration: Scope, Objectives and Methods. a cuidado de J. C. C,American Academy of Political and Social Science, Philadelphia 1968; P. Gi, La scienza dell’amministrazione. Considerazioni introduttive. C,Padova 1959; M. S. G,Diritto amministrativo, Giuffrè, Milano 1970, vol. I; F. HDY,Pubblica amministrazione: prospettive di analisi comparata (1966), Il Mulino, Bologna 1968; Id., L'administration publique. Recueil de Textes, a cuidado dos Instituis Belge et Français des Sciences Administratives, Paris 1971; Evolution de la Fonction publique et Exigences de Formation, a cuidado do Institut Admimstration-Université de Bruxelles, 1968; Traité de Science administrative, a cuidado de G. L,Paris 1966; Verwaltung. Eine einführende Darstellung, a cuidado de F. M M.Duncker and Humblot, Berlin 1965; "Revue
AGRESSÃO 17 internationale des sciences administratives", 1-2, 1971 (número dedicado à administração italiana); P. S, Administrative Theories and Politics. An Inquiry into the Structure and Process of Modem Government, Allen & Unwin, London 1971; V. A. T, Bureaucracy and innovation, University of Alabama Press, Tuscaloosa 1969.
temporária das relações entre dois Estados: uma fase de um processo um pouco mais amplo de relações conflituais que não merece, de per si, particular atenção. Somente J. Galtung abordou explicitamente o problema apresentando uma explicação com base na teoria estruturalista e nos processos conflituais decorrentes de desequilíbrios entre os Estados em diversas dimensões.
Agressão.
O termo Agressão, criado para indicar atos de violência armada de um Estado contra o outro, é, hoje, usado em sentido mais amplo, com referência não somente a um ataque militar mas também a qualquer intervenção "imprópria" de um Estado com prejuízo de outro. O termo está, contudo, associado a uma conotação negativa, tanto que é usado para indicar atividade de um Estado inimigo, nunca do próprio Estado. Ao tipo de Agressão clássica, isto é, a penetração das fronteiras de um Estado por parte das forças armadas de um outro Estado, se acrescentaram outras formas de Agressão, indicadas, às vezes, com o termo de Agressão indireta, tal como o apoio aos rebeldes de uma guerra civil num Estado estrangeiro, a subversão, a propaganda (exemplo: o incitamento à revolta via rádio), a espionagem, a inspeção aérea e por meio de satélites, a penetração econômica.
No direito internacional se encontram muitíssimas tentativas de definir a Agressão internacional a fim de distingui-la dos atos legítimos de autodefesa. Alguns estudiosos tentaram compor listas de atos de Agressão, mas tais listas se revelaram incompletas; outros, como Quiney Wright, acham mais útil o estudo de algumas crises contemporâneas que configuram os caracteres da Agressão, a fim de formular generalizações com base em características comuns. Muitos estudiosos chegaram, porém, à conclusão de que uma definição da Agressão é técnica e politicamente impossível: Herz afirma que é possível reconhecer a Agressão somente quando o Estado que sofreu a Agressão se declara vítima da mesma.
Na realidade, se se exclui o problema da definição jurídica da Agressão internacional — à qual está conexa a averiguação da violação dos direitos de um Estado —, a análise da Agressão não tem assumido uma relevância autônoma no estudo das relações políticas entre os Estados. Na análise política internacional, de fato, a Agressão é considerada somente como uma modalidade
BIBLIOGRAFIA- J. G,A Structural Theory of Aggression, in "Journal of Peace Research", 2, 1964; H,International Politics in the Atomic Age. Columbia University Press, New York 1965; QW,The Nature of Conflict, in "The Western Political Quarterly", 2, 1951.
Aliança.
I. D.— As Alianças constituem a forma mais íntima de cooperação entre Estados. Elas vinculam a ação dos Estados nas circunstâncias e nos modos previstos pelo acordo ou tratado que as institui. A palavra Aliança é utilizada, igualmente, para indicar as relações entre Estados, caracterizadas por uma colaboração prolongada no tempo, ainda quando não formalizada por acordo escrito. Neste caso, entretanto, seria mais correto falar-se de alinha mento (alignment). Uma Aliança se caracteriza, pelo contrário, pelo compromisso, em questões políticas ou militares, que diferentes Estados assumem para a proteção e a obtenção de seus interesses; o compromisso formaliza-se pela assinatura de um acordo ou tratado e pode-se até instituir uma organização temporária para a realização dos compromissos assumidos.
As Alianças podem ser bi ou multilaterais, secretas ou abertas, temporárias ou permanentes, gerais ou limitadas; podem servir interesses idênticos ou complementares ou fundar-se em interesses puramente ideológicos.
I. O.— A comunhão de interesses é considerada por muitos como condição para a existência de uma Aliança. Estes podem ser idênticos ou suscetíveis de tornar-se idênticos durante a Aliança. Os interesses, inicial mente não idênticos, devem permitir uma convergência de ação; tal convergência possui maior probabilidade de materializar-se quando a base da Aliança for constituída por um grupo de
18 ALIANÇA interesses e não apenas por um, interesses que podem ser idênticos, diferentes ou, inicialmente, até contrastantes.
A comunhão de interesses, entretanto, não explica por si só por que os Estados, em certo momento, escolhem uma forma particular de cooperação que constitui uma Aliança e não outro tipo de colaboração ou associação. Segundo Morgenthau, um tratado de Aliança é assinado quando os interesses comuns de vários Estados não poderiam ser atingidos senão pela estipulação do mesmo.
São dignas de menção mais pormenorizada as hipóteses de G. Liska e D. Edwards. Para o primeiro, mais do que criadas para algo, as Alianças nascem contra alguma coisa. Pelo exame de casos históricos e contemporâneos ele conclui que as Alianças são a conseqüência de conflitos com adversários comuns, as quais podem, inclusive, fazer desaparecer, por algum tempo, os conflitos existentes entre os aliados. O sistema dos Estados se subdivide em tantas Alianças quanto os diversos tipos de conflitos existentes a níveis global, regional e interno. O conflito entre o Leste e o Ocidente, no sistema global atual, e o conflito entre Bourbons e Habsburgos, no sistema global europeu de antanho, polarizaram, por exemplo, em ambos os casos, o sistema internacional em torno de duas grandes Alianças. Quando um conflito global divide duas potências ou dois grupos de potências, as Alianças ratificam uma polarização já existente; quando dois grandes conflitos, ao contrário, dividem três ou mais potências, as Alianças exercem papel mais importante. Até mesmo os conflitos menores exercem, freqüentemente, influência de grande importância na definição do quadro de Alianças. Entretanto, nos sistemas regionais, a distribuição natural das Alianças pode ser influenciada pela distribuição resultante do conflito global. A adesão de um Estado a uma Aliança, contudo, depende, em grande parte, dos conflitos internos; o equilíbrio interno das forças, segundo Liska, significa mais do que as ameaças e as pressões externas.
A hipótese de D. Edwards sobre a origem das
Alianças aplica-se às grandes Alianças que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. O estudioso norte-americano parte do exame do Pacto de Varsóvia. Tal Pacto foi originado por três fatores concorrentes: a modificação do status quo militar (remilitarização da Alemanha ocidental), o desejo 03 potência dominante de assegurar posições de força cm relação ao adversário comum diante de um declínio dos aliados tradicionais (fraqueza dos Estados europeus vizinhos da URSS) e a vontade dessa potência dominante de reforçar sua própria influencia sobre seus aliados (diminuição do controle soviético sobre as repúblicas populares européias após a morte de Stalin). Edwards detecta estes fatores até na origem da OTAN, da SEATO, da Aliança (hoje ultrapassada) entre a China e a União Soviética, e nas "relações especiais" entre os Estados Unidos da América e a Grã-Bretanha. A partir da observação da presença de determinados fatores na origem de diferentes Alianças e da constatação do papel representado por uma única potência "dominante", Edwards conclui que as teorias convencionais supervalorizam a função dos interesses na origem das Alianças e nota que elas exercem notável influência sobre a liberdade e a política dos Estados-membros. Na realidade, a quase totalidade dos estudiosos, muito mais do que observar quais são os fatores determinantes que se encontram na origem de quaisquer Alianças, examinaram, antes, os motivos que mais comumente levam os Estados a participarem de uma Aliança, isto é, as vantagens que um Estado pretende garantir. Estes estudiosos fundam suas posições no pressuposto de que o aparecimento das Alianças não pode ser explicado (e, portanto, previsto) na base de algumas regras ou princípios, mas que esse surgimento depende exclusivamente da discricionariedade dos Estados: um Estado decide entrar em uma Aliança após avaliar discricionariamente a situação presente e ter-se assegurado de que participar da Aliança permitir-lhe-á atingir determinados objetivos que, de outro modo, não poderia conseguir.
I. O-.— Os objetivos ou interesses que um Estado-membro entende perseguir em uma Aliança são, na prática, três, correlatos e interdependentes de várias maneiras: a segurança, a estabilidade e a influência. Uma Aliança oferece, dentro destes objetivos, vantagens políticas e militares. Um Estado se sente mais forte com o apoio diplomático de seus aliados; com isso pode provocar ou impedir uma revisão "pacífica" da situação existente. Uma Aliança é, também, fator de poder militar; o Estado sente poder contar com outras forças além das suas, como instrumento de dissuasão e de defesa.
O aumento da força própria por meio de uma
Aliança é objetivado, seja por Estados poderosos, seja pelos Estados mais fracos. O Estado fraco vê acrescido seu poder, aliando-se a um Estado mais forte; este, por sua vez, aproveita a ocasião para estender sua esfera de influência e aumentar seus recursos potenciais. Isto é válido, contudo, quando existe ameaça de um terceiro Estado, pois, de outra maneira, o mais fraco pode temer a perda
ALIANÇA 19 de sua própria identidade ao entrar para uma Aliança, enquanto o mais forte receia aumentai demasiadamente seus compromissos.
W. R.— O reforço das posições políticas e militares de um Estado depende, segundo muitos, da amplitude da Aliança: quanto maior for o número dos Estados-membros, maior'o incremento de poder de cada Estado. A política de Aliança seguida pelos Estados Unidos sob Eisenhower constitui exemplo concreto dessa concepção. W. Riker, partindo do modelo do jogo em ponto zero (que retém como o único válido para que se entenda a política), afirma, ao contrário, que as Alianças deveriam tender a ser as mais reduzidas possíveis. Sua teoria das coligações se funda em três princípios, deduzidos do modelo do citado jogo: o princípio da medida, segundo o qual os Estados, quando estão de posse de uma informação perfeita, tendem a formar a menor coligação vencedora para dividir entre o menor número possível de aliados o espólio da vitória; o princípio estratégico, segundo o qual, nos sistemas em que o princípio da medida é operante, os participantes na última fase das negociações, em que se manifeste mais de uma coligação mínima vencedora, deverão escolher uma única coligação; e o princípio de desequilíbrio, pelo qual os sistemas em que operam os dois princípios anteriores são inevitavelmente instáveis por causa da tendência dos atores maiores em recompensar, de modo crescente, os atores menores, mas essenciais à coligação mínima vencedora. Tal tendência, aos poucos, conduz ao declínio os atores principais.
— Uma vez constituída, o sucesso de uma Aliança depende da coesão e integração que seus membros desenvolvem entre si. Os fatores de coesão de uma Aliança são vários e, muito embora se acredite que uma generalização a respeito seja inútil, pelo fato de tais fatores não se encontrarem, necessariamente, presentes em todas as Alianças e de se combinarem, onde existem, de maneiras diferentes, pode-se formular, correta mente, algumas proposições gerais.
O fator ideológico é de grande importância nas
Alianças; onde não estiver presente, ele será colocado pelos líderes da coligação sempre que for útil, em tempo de paz e em tempo de guerra. Com relação aos países não-membros, a ideologia tem a função de desmoralizar o adversário e insere-se no âmbito da guerra psicológica; com relação a seus membros, reforça as relações entre os aliados, criando a convicção da utilidade da união de seus próprios recursos e da superação de eventuais divergências.
O sucesso de uma Aliança depende, ainda, do tipo de consultas realizadas entre os membros. Em Alianças que se caracterizam pela igualdade e solidariedade entre seus componentes, as consultas se revelam eficazes; caso contrário, o dever de se recorrer a consultas gerais, a todo o instante, reduz a eficácia militar da Aliança e a influência que os membros mais importantes possam exercer sobre os Estados não-membros.
As possibilidades materiais (capabilities) dos diferentes Estados-membros influenciam, de várias maneiras, a vida de uma Aliança. Dá-se atenção especial à capacidade dos Estados-líderes, a qual deverá tender a aumentar sempre para assegurar o sucesso da coligação. O crescimento preponderante do poderio de um Estado, entretanto, não favorece a coesão da Aliança porque, normalmente, não corresponde aos interesses dos outros aliados; o mesmo se pode dizer no que respeita ao declínio de poder de um aliado. A coesão, por outro lado, é incrementada quando ocorre um equilibrado crescimento do poder dos diferentes aliados, permitindo a realização dos objetivos da Aliança.
É por si mesmo evidente o fato de que a vida de uma Aliança é condicionada pela política interna de cada membro. A instabilidade interna, com freqüentes trocas de Governo, constitui fator de desintegração, tendo em vista que a oposição se inclina a modificar a política de Aliança do Governo anterior. O relacionamento entre Governo e oposição influencia, determinantemente, a coesão da Aliança de que participam Estados politicamente ainda não amadurecidos; estes, de fato, têm-se demonstrado menos predispostos a aceitar as limitações que surgem dentro de uma Aliança. Uma Aliança, na verdade, quase sempre, é fonte de limitações para os Estados participantes, os quais as aceitam, apenas, como preço inevitável de resistência ao adversário; tal preço é sentido ainda mais quando o adversário busca, através de táticas particulares (oferta secreta de vantagens a alguns membros, por exemplo) corroer a coesão entre os aliados. Não apenas uma Aliança, mas até a estabilidade do sistema internacional, pode ser comprometida quando um Estado considera excessivo o peso das limitações que uma Aliança impõe a seus interesses.
Finalmente, uma Aliança deveria cessar no momento em que seus objetivos fossem alcançados, mas são numerosos os motivos que provocam rompimentos antes do tempo previsto. Normalmente, a causa desses rompimentos encontra-se na insatisfação de um ou vários aliados, provocada pela compreensão de uma disparidade entre os
20 ALIENAÇÃO compromissos assumidos e as limitações sofridas, de um lado, e os próprios fins e ambições, do outro.
VI. A.— Um tema muito discutido em obras mais recentes é o do relacionamento entre a proliferação nuclear e a sobrevivência das Alianças. É assunto sobremaneira complexo para elucidação do qual não são suficientes as experiências feitas até agora por algumas potências médias, no campo do desenvolvimento de arsenais nucleares, assunto sobre o qual é possível emitir, apenas, algumas hipóteses. Prevê-se, por exemplo, que a difusão das armas nucleares provocará, não exatamente uma desaceleração das Alianças, mas uma sua revisão. Antes de renunciar aos compromissos frente a um aliado que conseguiu obter um potencial militar nuclear (renúncia que implicaria na perda de um aliado), a potência-líder da Aliança, já possuidora de armas nucleares, há de preferir ir ao encontro dos interesses do aliado, adaptando aos mesmos o próprio compromisso. Fazer-se ouvir, aumentar o próprio prestígio e o potencial político-militar seria, provavelmente, o que objetivaria uma potência média que obteve a posse do armamento nuclear.
A proliferação nuclear, portanto, não deveria marcar, como alguns sustentam, o fim da era das Alianças, como não o foram o surgimento das duas organizações internacionais: o da Sociedade das Nações e o das Nações Unidas, as quais deveriam oferecer garantias aos Estados, por meio de um sistema de segurança coletiva, que tornaria inútil as Alianças. A falência de tal sistema, devido à lógica bipolar imposta pelas duas superpotências, levou os Estados a verem nas Alianças um instrumento ainda válido de segurança.
BIBLIOGRAFIA.- D. E,International political analysis, Holt, New York 1969; O. HOLSTI, P. He J. S,Unity and disintegration in international alliances: comparative studies, Wiley, New York 1973; G. L,Nations in alliance, Hopkins Press, Baltimore 1968; W. R,The theory of political coalitions, Yale University Press, New Haven 1967.
Alienação.
I. D.— "Ao nível de máxima generalização, a Alienação pode ser definida como o processo pelo qual alguém ou alguma coisa
(segundo Marx, a própria natureza pode ficar envolvida no processo de Alienação humana) é obrigado a se tornar outra coisa diferente daquilo que existe propriamente no seu ser" (P. Chiodi). O uso corrente do termo designa, freqüentemente em forma genérica, uma situação psicossociológica de perda da própria identidade individual ou coletiva, relacionada com uma situação negativa de dependência e de falta de autonomia. A Alienação, portanto, faz referência a uma dimensão subjetiva e juntamente a uma dimensão objetiva histórico-social. Neste sentido se fala: de Alienação mental como estado psicológico conexo com a doença mental; de Alienação dos colonizados enquanto sofrem e interiorizam a cultura e os valores dos colonizadores; de Alienação dos trabalhadores enquanto são integrados, através de tarefas puramente executivas e despersonalizadas, na estrutura técnicohierárquica da empresa individual, sem ter nenhum poder nas decisões fundamentais; de Alienação das massas enquanto objeto de heterodireção e de manipulação através do uso dos mass media, da publicidade, da organização mercificada do tempo livre; de Alienação da técnica como instrumentação dos aparelhos para que funcionem segundo uma lógica de eficácia e de produtividade independente do problema dos fins e do significado humano de seu uso. A definição do termo em relação aos diferentes estados de despersonalização e de perda de autonomia por parte dos sujeitos envolvidos nos processos em questão corresponde a uma banalização do conceito, mas também à complexidade de semântica que ele tem na cultura filosófico-política moderna dentro da qual ele foi elaborado.
I. DRM.— A doutrina contratualista transfere o conceito de Alienação do âmbito originariamente jurídico (alienatio como cessão de uma propriedade) para o âmbito filosóficopolítico a fim de explicar o fundamento do Estado e da sociedade política. Hobbes fala de "cessão" (to give up) do direito de o soberano se governar a si mesmo, através do pacto que marca a saída do Estado de natureza. Rousseau introduz o termo de Alienação para indicar a cláusula fundamental do contrato social que consiste na "Alienação total de cada associado com todos os seus direitos a toda comunidade", de modo que "cada um, unindo-se a todos, não obedeça, todavia, senão a si mesmo e fique tão livre quanto o era antes" (Contrato Social, I, 6). A Alienação se apresenta, portanto, como o ato de cessão positiva que institui a vontade geral.
Hegel rejeita a teoria contratualista de formação do
Estado e da Alienação como relação recíproca de cessão e troca. O argumento mais substancial
ALIENAÇÃO 21 é o fato de que para ele o sujeito da história não são os indivíduos mas é o espírito absoluto ou autoconsciência; a multiplicidade e a alteridade (alter) aparecem como momentos derivados e negativos em relação à unidade do espírito (e de seus titulares: o espírito do povo, o Estado). Praticamente Hegel aplica no campo histórico-social o núcleo conceituai próprio da teologia neoplatônica, isto é, o Uno que se divide e se multiplica num processo necessário de Alienaçãoestranhamento (respectivamente: Entäusserung/Veräusserung e Entfremdung). A fenomenologia do espírito é inteiramente construída sobre a demonstração do necessário processo da Alienação-estranhamento do espírito, através do encadear-se das figuras históricas, e da necessária superação do ser-outro e do estranhamento na totalidade do devir e na unidade do absoluto. O termo final é o saber absoluto como consciência de que o objeto é produzido pela autoconsciência e nela se resolve. Por isto, diz Hegel, a Alienação da autoconsciência "tem sentido não somente negativo mas também positivo" enquanto necessário processo de auto-afirmação pela cisão e pela produção das formas da alteridade histórico-objetiva. Na perspectiva desta elaboração lógico-ontológica, Hegel desenvolve, também, uma análise de grande eficácia do mundo moderno vendo-o como "espírito que se estranhou". O termo de referência é a idealização (presente também em Rousseau) da unidade de indivíduo e comunidade na . O mundo moderno é o rompimento desta unidade, por causa especialmente da riqueza que destrói a universalidade do Estado e faz com que a realidade social, ao invés de ser realização, apareça à consciência como "inversão" e "perda da essência". São estas evoluções analíticas que Marx tem em consideração nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 para afirmar que .na Fenomenologia de Hegel estão contidos, embora numa forma idealística e mistificada, "todos os elementos de crítica". "O importante na Fenomenologia hegeliana e no seu resultado final — a dialética da negatividade como princípio motor e gerador — é, portanto, que Hegel entende o autoproduzir-se do homem como um processo, o objetivar-se como um opor-se, como Alienação e supressão dessa Alienação; ele capta, então, a essência do trabalho..." (Terceiro manuscrito, XI). Na história do trabalho, como objetividade alienada do ser do homem (enquanto estranhamento das forças essenciais da humanidade, estranhamento que se realizou sob o signo da propriedade privada), o jovem Marx encontra a chave interpretativa para reformular os resultados da economia política clássica em sentido antropológico. Hegel entendeu que a história é a auto-produção alienada que o homem faz de si no trabalho, mas entende o trabalho como atividade espiritual de um sujeito absoluto. A crítica antiespeculativa de Feuerbach denunciou a negação idealista do sujeito e do predicado e repropôs vigorosamente o sujeito como ser natural, sensível e, portanto, a objetividade e a alteridade como dimensões positivas em linha de direito, rejeitando a confusão hegeliana entre objetivação e Alienação. Ele, porém, não entendeu a produtividade histórica de Alienação enquanto premissa necessária do seu superamento histórico no comunismo. O superamento da Alienação gira em torno do eixo que é a abolição da propriedade privada e do trabalho estranhado. A Alienação do trabalho nos Manuscritos é analisada como: a) estranhamento do operário do produto do trabalho; b) estranhamento da atividade produtiva, que de primeira necessidade se tornou atividade coata; c) estranhamento da essência humana enquanto a objetivação do gênero humano está degradada em atividade instrumental em vista da mera existência particular; d) estranhamento dos homens entre si em relações de antagonismo e concorrência.
A partir da Ideologia alemã (1845-46), Marx, enquanto aprofunda a análise do estranhamento através de uma história da propriedade privada como divisão do trabalho, começa a caracterizar o comunismo filosófico e o seu conceito-chave: a Alienação da essência humana. De fato, Marx e Engels estão elaborando os conceitos fundamentais do materialismo histórico e aquela crítica da essência da economia política que se tornará teoria do mundo de produção capitalista, como estrutura baseada na produção da mais-valia. Daí a tese de alguns intérpretes que expõem a teoria da Alienação do jovem Marx como "pré-marxista" (L. Althusser). A questão é muito controvertida, porque: a) se é verdade que no Capital não se encontra mais uma referência consistente à Alienação é também verdade que partes inteiras, como a IV secção do primeiro livro, percorrem a história da indústria como crescente estranhamento dos trabalhadores em relação à concentração dos instrumentos de trabalho, saber e força combinada do trabalho num aparelho objetivo, a eles estranho e contraposto enquanto capital. Existe, em particular, continuidade entre o conceito juvenil de trabalho estranhado e o maduro de trabalho abstrato; b) é inegável a estreita correlação entre a análise do trabalho alienado e a análise do fetichismo e da reificação (cap. I do livro I e cap. 48 do livro I), isto é, do "caráter mistificatório que transforma as relações sociais, para as quais os elementos materiais servem de depositários na produção, em propriedade destas mesmas coisas (mercadoria) e, ainda, em forma
2 ALIENAÇÃO mais acentuada, a própria relação de produção em uma coisa (dinheiro)"; c) são especialmente o termo e o conceito de Alienação que ocorrem muito freqüentemente e em trechos decisivos dos cadernos dos Grundrisse, trabalhos preparatórios para a crítica da economia política elaborados por Marx nos anos de 1857-58; d) mas é também verdade que, nas passagens de mais estreita correlação com a teoria juvenil, o Marx maduro só raramente retorna à elaboração conceituai de um sujeito (o trabalho ou o homem) que se aliena ou reifica, enquanto habitualmente fala de uma estrutura (o modo capitalista de produção) no interior da qual as relações sociais assumem necessariamente a aparência fetichista de coisas. Não deve ser, portanto, minimizada a deslocação epistemológica efetuada; de modo especial é de assinalar o fato de que a desalienação ou a reapropriação aparecem como efeitos de mudanças estruturais no processo de transição para um modo diferente (comunista) de produção.
I. O CONCEITO DE ALIENAÇÃO NA FILOSOFIA POLÍTICACONTEMPORÂNEA.— O marxismo da Segunda Internacional, embora conhecendo em parte os escritos inéditos de Marx (o Nachlass foi publicado em pequena parte por F. Mehring), não atribui nenhuma importância ao conceito de Alienação, como também, não obstante a escrupulosa publicação dos Manuscritos em 1932 e dos Grundrisse em 1939-41, a Alienação substancialmente é um conceito estranho ao marxismo-leninismo da Terceira Internacional, porque ambos estão interessados nas tendências objetivas, na crise geral do capitalismo e na transferência das forças produtivas amadurecidas dentro da sociedade burguesa do socialismo entendido como estatização dos meios de produção. A retomada da problemática conceituai referente ao nexo entre Alienação-fetichismoreificação acontece especialmente à margem das correntes principais da tradição marxista, freqüentemente por obra dos críticos desta tradição.
De modo particular o conceito de Alienação foi o centro da filosofia política que pretendeu reformular as categorias fundamentais hegeliano-marxistas referentes à crítica do neocapitalismo, de um lado, e do socialismo burocrático, do outro. A difusão da problemática da Alienação se situa entre os anos de 1950-60 quando foram descobertos os primeiros escritos de Lukács e de Korsch, e na altura em que os estudos de Marcuse e de Sartre já tinham muitos seguidores. Lukács (História e consciência de classe, 1923) vê o fenômeno da Alienação-reificação se estender da fábrica taylorista a todos os setores da sociedade — ao direito, à administração, à indústria cultural, etc. — constituindo setores autônomos, fragmentários, dirigidos pela racionalização baseada no cálculo e por uma eficiência que tinha a si mesma como fim. A Alienação, agora, não diz respeito somente ao. trabalho nas condições capitalistas, mas também ao mundo da ciência e da técnica formado no interior das relações burguesas de produção. Encontramos em Marcuse análoga extensão do conceito de Alienação para o mundo do trabalho e, especialmente para a civilização como um todo enquanto produto do princípio de prestação e da racionalidade instrumental. Para esse autor, "racionalmente o sistema de trabalho deveria ser organizado mais com o objetivo de economizar tempo e espaço para o desenvolvimento individual além do mundo do trabalho, inevitavelmente repressivo" (Eros e civilização, 1955, IX). O conceito de Alienação desempenha também uma função essencial no existencialismo marxista de Sartre (Crítica da razão dialética, 1960) que insiste na necessária recaída — no quadro da penúria — da praxe individual e de grupo no mundo dos anônimos aparelhos reificados, o mundo da serialidade e do prático-inerte, no qual os fins se mudam necessariamente em anônima contrafinalidade e os homens se tornam objeto de processos que não controlam.
Foi frisado (G. Bedeschi) o fato de que estes autores privilegiam a conexão entre Hegel e Marx e acabam por confundir Alienação e objetivação, recaindo naquela posição idealista que o jovem Marx critica em Hegel. É oportuno, porém, ter em consideração o âmbito referencial específico, a respeito do qual eles usam os conceitos de Alienação e de reificação: a problematicidade das condições de emergência da consciência revolucionária no capitalismo desenvolvido (Lukács); o capitalismo maduro como "sistema" que tudo compreende e administra (Marcuse); a gênese, dentro do próprio processo revolucionário, de aparelhos burocráticos e repressivos (Sartre). Mais do que em Hegel, ficaria, desse modo, distinta a estrutura lógico-ontológica do conceito de Alienação e o seu uso parcialmente heurístico na revelação de aspectos histórico-sociais que constituem um problema para a filosofia política de origem mais ou menos marxista.
BIBLIOGRAFIA.- L. ,Per Marx (1965), Editori Riuniti, Roma 1967;G. B.A. e feticismo nel pensiero di Marx. Laterza. Bari 1968; Id., "A.", Enciclopédia Einaudi. Turim 1977, vol. I, p. 309-43; C. C,Il conceito di A. da Rousseau a Sartre, Sansoni. Firenze 1974; P. C, Sartre e il marxismo, Feltrinelli, Milão 1965; I. mesários, La teoria Della. m Marx (1970),
ANARQUISMO 23
Editori Riuniti, Roma 1976; C. N,Lezioni sul Capitolo sesto inédito di Marx. Boringhieri, Turim 1972.
Anarquismo.
I. D.— Não é possível dar uma definição totalmente precisa de Anarquismo. O ideal designado por este termo, embora tenha sofrido notável evolução no tempo, sempre se manifestou e manifesta como coisa realizada e elaborada, como aspiração ou como objetivo último e referencial, cheio de significados e de conteúdos, dentro da perspectiva em que é analisado. O termo Anarquismo, ao qual freqüentemente é associado o de "anarquia", tem uma origem precisa do grego anarcia, sem Governo: através deste vocábulo se indicou sempre uma sociedade, livre de todo o domínio político autoritário, na qual o homem se afirmaria apenas através da própria ação exercida livremente num contexto sócío-político em que todos deverão ser livres. Anarquismo significou, portanto, a libertação de todo o poder superior, fosse ele de ordem ideológica (religião, doutrinas, políticas, etc.), fosse de ordem política (estrutura administrativa hierarquizada), de ordem econômica (propriedade dos meios de produção), de ordem social (integração numa classe ou num grupo determinado), ou até de ordem jurídica (a lei). A estes motivos se junta o impulso geral para a liberdade. Daí provém o rótulo de libertarismo, atribuído ao movimento, e de libertário, empregado para designar o que adere ao libertarismo.
Precisados os termos, por Anarquismo se entende o movimento que atribui, ao homem como indivíduo e à coletividade, o direito de usufruir toda a liberdade, sem limitação de normas, de espaço e de tempo, fora dos limites existenciais do próprio indivíduo: liberdade de agir sem ser oprimido por qualquer tipo de autoridade, admitindo unicamente os obstáculos da natureza, da "opinião", do "senso comum" e da vontade da comunidade geral — aos quais o indivíduo se adapta sem constrangimento, por um ato livre de vontade. Tal definição genérica, avaliada de diversas maneiras por pensadores e movimentos rotulados de anárquicos, pode ser sintetizada através das palavras retomadas em nosso século, por volta dos anos 20, pelo anárquico Sebastien Faure na Encyclopédie anarchiste: "A doutrina anárquica resume-se numa única palavra: liberdade".
I. N.— O espírito libertário ou, por outras palavras, o anseio pela liberdade absoluta, é próprio de todas as épocas históricas. Pode-se até afirmar que o Anarquismo se apresentou com semblantes heterogêneos desde a antigüidade clássica, acompanhando, de vários modos, o desenvolvimento sócio-cultural. A história dá-nos três formas diferenciadas da manifestação do fenômeno: a) em primeiro lugar existe a manifestação de um Anarquismo a nível puramente intelectual, em autores de excepcional ou insignificante relevo que se tornaram críticos da autoridade política do seu tempo e que discutiram a eventualidade de construir uma sociedade antiautoritária ou, pelo menos, a-autoritária. Muitas vezes, mas não sempre, a apresentação de concepções libertárias coincidiu com propostas genericamente definidas como utopistas; b) em segundo lugar, a aspiração anárquica está ligada a afirmações de tom mais ou menos vagamente religioso. Entram, neste âmbito, todos os apelos milenarísticos de uma sociedade perfeita, onde a meditação entre o humano e o divino não precisaria de particulares supra-estruturas autoritárias e onde, mediante a eliminação destas, a sociedade perfeita poderia verificar-se imediatamente; c) finalmente, as duas manifestações apontadas, intelectualística uma e fideística outra, foram colocadas freqüentemente em confronto em movimentos efetivos de tipo social, geralmente rebeldes, os quais, em ocasiões históricas específicas, congregavam numerosas forças sociais, particularmente do setor agrícola, sob a forma de protesto coletivo e contestador das autoridades políticas e das estruturas sociais existentes. Basta pensar nas freqüentes revoltas medievais dos camponeses da Grã-Bretanha para chegarem às posições libertárias, do movimento dos cavadores (diggers) na revolução do século XVII ou nas revoltas dos camponeses alemães liderados por Thomas Munzer rebelados contra os príncipes ou, finalmente, em numerosas expressões extremas de movimentos anabatistas.
As concepções libertárias só tiveram um desfecho irrevogável no mundo político do século XVIII, como primeira forma de reação e de união simultânea em relação ao racionalismo iluminista, provocando e aprofundando a discussão sobre o conceito de autoridade. Esta — e o exemplo iluminista é exatamente o de Rousseau — é acolhida no campo político, mas posteriormente limitada e rejeitada no plano individual. A contradição ideal presente nessa relação mantém-se intacta se bem que levada a um plano de luta política efetiva, no curso da Revolução Francesa. Nesta, o grupo jacobino, partidário maior dos princípios da autoridade e da centralização,
24 ANARQUISMO produziu, em seu seio, forças contestadoras e libertárias, tais como, por exemplo, os enragés (os enraivecidos) assim como, no final do ciclo revolucionário, alguns expoentes de primeiro plano da conspiração babuvista pela igualdade.
ANARQUISMO. — Com a Revolução Francesa e com o desenvolvimento industrial, nasce e se afirma um tipo de Anarquismo a que pode ser dado o nome de "moderno" e que permanece ainda no debate político de nossa época.
O primeiro índice desta mudança é a consagração do termo anarquia em sentido positivo, contraposto ao uso e até então quase que exclusivo, no sentido de caos e de desordem. Com essa característica, sempre acompanhada de uma negação absoluta do presente social, apontando para uma ruptura revolucionária (a negação pura será talvez o único componente a ser colocado em evidência), a anarquia recebe formas novas de elaboração teórica e de aplicação prática que se vão acentuando, cada vez mais, com o decorrer dos anos. No campo do debate doutrinai, o momento do desenvolvimento de um verdadeiro e próprio "pensamento anárquico" pode ser fixado nos fins do século XVIII, numa obra famosa e popular e ao mesmo tempo grandiosa e abstrusa: a Enquiry concerning political justice de William Godwin. Nessa obra, os temas, que se tornarão mais tarde típicos do Anarquismo, a recusa de autoridades governantes e da lei são inseridos numa dinâmica dominada pela razão e por um justo equilíbrio entre necessidade e vontade, terminando na demanda de uma liberdade total no campo ético-político, realizável apenas num regime comunitário que desaprova a propriedade privada. Estes princípios, diversamente interpretados e ulteriormente elaborados, fornecem o ponto de partida para o desenvolvimento posterior de toda a corrente ideal que, no decorrer do tempo, se identifica com o Anarquismo comunista, ao qual vários pensadores ou simples propagandistas juntarão, continuamente, novos elementos. Se em Godwin o Anarquismo ainda não se apresenta como concepção completa, no decorrer do século XIX adquire uma organicidade como expressão e ponto de encontro de um debate ideal que encontra, na realidade social, uma correspondência imediata. De quando em quando, o Anarquismo apresenta-se com cores políticas e sociais e só raramente mantém integralmente a caracterização de prevalência ética, que era notória na sua primeira existência histórica.
Nesta luta evolutiva, participada por pensadores políticos e "organizadores" dessemelhantes entre si — como Proudhon e Bakunin, Stirner e
Malatesta, Kropotkin e Tolstoi, e outros — vão-se configurando algumas divisões fundamentais e dissensões as quais, apesar de múltiplas tentativas, não foram nunca sanadas. A cisão de base situa-se entre o Anarquismo individualista e o Anarquismo comunista. O primeiro, que tem como autor principal a Max Stirner, apóia tudo sobre o indivíduo. Este, através do próprio "egoísmo" e da força que dele deriva, afirmase a si mesmo e à sua própria liberdade mas apenas na condição existencial totalmente privada de componente autoritário, em contraposição e também em equilíbrio com todas as outras forças e egoísmos dos outros indivíduos, únicos na arrancada da ação para alcançar o fim último, que é a realização completa do EU, numa sociedade não organizada e independente de todo o vínculo superior. O Anarquismo comunista, que representa historicamente um passo à frente em relação ao Anarquismo individualista, vê a realização plena do EU numa sociedade onde cada um for induzido a sacrificar uma parte da liberdade pessoal, mais precisamente a econômica, pela vantagem da liberdade social. Esta pode ser alcançada através de uma organização comunitária dos meios de produção e do trabalho e numa distribuição comum dos produtos, na proporção das necessidades de cada um, desde que nela sejam salvaguardados os princípios fundamentais do Anarquismo, a saber, o exercício das mais amplas liberdades para o indivíduo e para a sociedade. Como subcategoria do Anarquismo comunista, ou como estádio mais atrasado do mesmo, encontramos o Anarquismo coletivista, teorizado por Bakunin e aplicado em Espanha, que propõe o comunitarismo do trabalho e da produção, colocando em comum todos os meios a ela necessários, mas deixando a cada um usufruir individualmente os resultados do trabalho pessoal. No quadro das correntes descritas, interpõemse outras subdivisões que acentuam os aspectos sociais — de claras ligações com o mundo do trabalho e em particular com o proletariado — ou que fazem ressaltar os módulos político-ideais, ou seja, a temática relativa ao Estado, ao Governo e, mais genericamente, à autoridade. Todas estas correntes que são mais para examinar em suas relações recíprocas e em seu devir histórico do que para aceitar — dada a sua rigidez esquemática — plasmaram o substrato dentro do qual se moveu o mundo que até hoje se voltou para o Anarquismo.
IV. O,.— Se examinarmos os momentos mais importantes e participantes do Anarquismo, desligando-os de seu contexto histórico ou de sua colocação frente
ANARQUISMO 25 aos problemas modernos, poderemos descobrir três subcategorias que se referem respectivamente a) aos objetivos — negativos (I) ou construtivos (I); b) aos meios; c) às táticas.
1. Objetivos negativos. São estes certamente os frutos criticamente mais elaborados encarados permanentemente pelo Anarquismo e que podem ser colocados na negação sustentada pelo Anarquismo frente: a) à autoridade; b) ao Estado; c) à lei.
a) O Anarquismo rejeita toda a autoridade na medida em que vê nela a fonte exclusiva dos males humanos. A autoridade rejeitada pode ser tanto de ordem sobrehumana como de ordem humana. À frente de todas, está a autoridade divina e, conseqüentemente, o poder sobrenatural do qual deriva toda a faculdade de comando, que é negado não tanto como conseqüência de um raciocínio filosófico mas simplesmente como um poder. Nessa condição, ele é um condicionador das escolhas e das ações voluntárias do homem. Como corolário, nasce daí a repulsa por qualquer religião, enquanto ideologia, "nobre mentira", capaz de justificar o arbítrio usado com intuitos repressivos e de efeitos encontráveis no campo moral para encarnar estruturas terrenas e coercitivas na vida individual e coletiva. Historicamente dependente da autoridade divina, mas plenamente autônomas nas épocas moderna e contemporânea, a autoridade política foi identificada com aqueles que têm na mão a gestão do poder político desde a cúpula do Governo até os níveis mais baixos da ossatura do Estado, nas várias manifestações do poder em escala nacional. A autoridade política, expressão da autoridade ou do poder econômico segundo as interpretações do Anarquismo ligadas, de certa maneira, à análise marxista, é a causa primeira da opressão do homem no Estado social e como tal deve ser combatida, tanto no plano ideal como no plano real. Nasce disto a firme oposição do Anarquismo a todo o poder político organizado institucional-mente ou voluntariamente. Como associação política por excelência está o partido ou os partidos visados pelo Anarquismo sendo que algumas correntes ainda toleram a organização sindical num plano horizontal. Neste contexto, dentro da organização política, o indivíduo, por limites impostos ou por vontade, cede uma parte da sua liberdade à coletividade e, como num nível superior é rejeitada toda a concepção contratual, assim, em nível mais baixo, não são admitidas as teses de associação, com a única exceção das mutuárias, onde o indivíduo não é privado do que lhe pertence, e onde, como numa espécie de doação, ele concede à comunidade algo que tende a exaltar-lhe a liberdade de indivíduo.
b) A recusa do Estado por parte do Anarquismo está intimamente ligada à sua concepção de autoridade. O Estado, em toda a sua organização de pirâmide burocrática, é o órgão repressivo por excelência. Como tal, priva o indivíduo de toda a liberdade, chamando unicamente para si a capacidade de agir e a possibilidade de definir a liberdade, impondo uma série de obrigações e de comportamentos a que o indivíduo não pode fugir. É isto que o Anarquismo pretende combater. Enquanto órgão de repressão, o Estado é visto pelo Anarquismo com capacidade de intervenção global na vida do indivíduo, na sua vida econômica, na sua existência social como também na sua capacidade de desenvolvimento ético e independente. O Estado não está apenas na raiz de todo o mal social. É também o criador da ordem econômica existente e do capitalismo moderno. Este só consegue sobreviver porque se apóia numa base político-organizacional que lhe é fornecida por estruturas estatais. Deste modo, o Anarquismo, na interpretação de Bakunin e de seus epígonos, por exemplo, vira completamente de baixo para cima a análise marxista da relação existente entre estruturas econômicas e superestruturas políticas.
c) Finalmente, como conseqüência de sua atitude para com o Estado, o Anarquismo condena a lei, ou seja, toda a forma de legislação que, na prática, seja expressão de repressão por parte da máquina de Estado. A lei é o instrumento de opressão de que se vale a organização política do presente para coarctar especificamente as liberdades geralmente reprimidas pela autoridade. A legislação é rejeitada, por isso, seja como forma de contenção de uma condição social de liberdade seja como meio de ilusão levado a cabo pelos fortes em prejuízo dos fracos. Para o Anarquismo social, esta ilusão da legislação é praticada pelos ricos em prejuízo dos pobres e pelos capitalistas em prejuízo dos proletários. Isto não impede que o Anarquismo não recuse toda a defesa do organismo social existente. Na verdade admite formas livres e espontâneas de jurisdição que surjam das mesmas exigências de situações concretas e que devem ser interpretadas como verdadeiras intervenções terapêuticas por ocasião de males sociais e que têm por fim a cura desses males e não a sua perseguição ou condenação.
2. Objetivos positivos e construtivos. Há dois pressupostos que dinamizam estes objetivos: em primeiro lugar, o de toda a crítica negativa a respeito do mundo existente, tal como sugerimos acima; em segundo lugar, o pressuposto de que,
26 ANARQUISMO conforme constatação, se o homem deve viver sem Estado, e pode viver sem Governo, deve também desenvolver a própria existência em qualquer sociedade, onde exista a aceitação conceptual desta, e, conseqüentemente, a possibilidade da fazer reverência a uma "futura sociedade anárquica". Esta nova sociedade tem como fundamento próprio e como condição essencial e única a liberação do indivíduo, a nível individual e social, de toda a imposição externa. O único vínculo a que ainda está vinculado o comportamento individual é a "opinião", ou seja, a atitude — também livre e autônoma — de todas as outras mônadas que constituem precisamente a sociedade. Num quadro deste tipo podem surgir todas as formas de vida social organizada, as quais, por uma contradição meramente aparente, foram definidas como organizações anárquicas que dizem respeito ao (a) campo econômico e ao (b) campo social.
a) Organizações anárquicas de tipo econômico. Foram propostas algumas organizações anárquicas com base numa nova estruturação econômica. Em geral, essas organizações dizem respeito a uma gestão comunitária ou comunística da sociedade. Pode se afirmar que todas são fundadas sobre o elemento cooperativo, isto é, sobre a livre associação de indivíduos com fins de produção e de distribuição de bens produzidos e tendo em vista a eliminação de toda a tendência autoritária através da criação da autogestão, a partir de baixo. Esta determina os objetivos comuns e indica os meios técnicos (necessariamente "autoritários") para alcançar fins concretos. Da forma cooperativa originária de base se passa a construções mais amplas através de figuras sucessivas e mais articuladas de federação, b) Organizações anárquicas de tipo social. A base social da organização anárquica, paralela à econômica, é constituída segundo as correntes ou pelo próprio indivíduo ou pelo núcleo familiar. Estes, unidos num certo território geográfico e tendo interesses e atividades coletivas afins, constituem a comuna (commune) dentro da qual todos são iguais e as decisões são tomadas por iniciativa de todos, numa espécie de democracia direta que, porém, é incompleta, enquanto está privada de representação institucional (até em suas formas não delegadas). A união das comunas dá lugar à federação no âmbito da qual as relações intercorrentes são análogas, havendo' assim, sempre em escala geográfica mais vasta, a federação das federações, até alcançar o ponto alto e ideal da pirâmide que seria a federação anárquica universal, uma espécie de objetivo final como aspiração de uma meta de desejável realização. Se estes são os aspectos positivos gerais do Anarquismo, entendidos como projetos de solução global dos problemas da humanidade, é oportuno observar também que o Anarquismo propõe toda uma série de objetivos intermediários que só impropriamente podem ser chamados, mais do que de transformação, de ação social e sempre de realização imediata, exeqüíveis a curto prazo. Estes últimos, porém, coincidem mais com os meios, através dos quais o próprio Anarquismo entende realizar-se.
3. Os meios. São bastante diversos, apesar de historicamente ter havido uma notável interdependência entre eles. Embora se apóie em pressupostos antiorganizativos, uma expressiva parte do Anarquismo (com o auspício de Eurico Mala-testa) admitiu a possibilidade da organização como fundamento do progresso e da difusão das próprias doutrinas anárquicas apoiando-se na propaganda tradicional — ou até na propaganda específica embora rejeitada por muitos, chamada propaganda "dos fatos" — e usando, desde que se respeitem determinados vínculos libertários como é o caso, já referido, da autogestão a partir de baixo para cima ou o da substituição dos órgãos centrais de direção — comitês centrais ou conselhos diretores — por simples comitês de correspondência. O dado organizativo teve sempre no Anarquismo uma referência social explícita, bem diversa, por exemplo, da que é proposta pelo marxismo. Na verdade, o Anarquismo está ligado às massas e nunca às classes. De modo particular, não evoca a classe operária, considerada como verdadeira aristocracia incapaz de querer obter a própria liberdade enquanto integrada no "sistema" e beneficiadora de inúmeros privilégios. O Anarquismo liga-se mais ao sub-proletariado das cidades e ao campo em especial, que vive marginalizado pela sociedade burguesa e em condições de miséria material e moral e, por isso, o levantar-se contra as estruturas do poder. Organização e propaganda, unidas ou separadas, segundo as interpretações, são as bases necessárias para as três formas de organização anárquica que até agora caracterizaram o movimento e que suscitaram a atenção teórica dos estudiosos: a) a educação: b) a rebelião; c) a revolução.
a) A educação na sociedade autoritária representa a primeira forma de intervenção repressiva sobre o homem. É lógico, por conseguinte, que o Anarquismo tenha procurado colher, de um lado, todos aqueles elementos libertários aplicáveis à criança e ao adulto, como formas de estruturação ética e cultural do homem sem constrangimento da inteligência e do espírito na base de esquemas fixos estabelecidos a priori. A educação e mais genericamente toda a pedagogia libertária
ANARQUISMO 27 tentaram construir uma escola livre de vínculos com a sociedade repressiva, que fosse capaz de contribuir para criar um homem sem inibições para consigo mesmo, e apto a agir fora de todo o esquema imposto em seu relacionamento com a sociedade.
Mas a educação, entendida não mais como elemento de formação individual e sim como verdadeiro processo de difusão de idéias anárquicas na sociedade, representou também um dos maiores momentos da presença do Anarquismo, o qual, especialmente em suas expressões pacifistas, baseadas no conceito de amor e de não-violência — foi o caso de Leão Tolstoi — atribuiu amplo espaço a todas as motivações que implicavam a possibilidade ou a necessidade de dar uma formação livre à criança ou, mais amplamente, ao homem que vive em sociedade. Daí provieram concepções que recebiam a denominação de "educacionismo", enquanto buscavam no fator educacional o fim e o princípio da própria ação.
b) Característico do Anarquismo é o fenômeno da rebeldia, por seu lado exterior violento ou, pelo menos, não pacífico — vizinho, mas não necessariamente conexo com o fenômeno paralelo do insurrecionismo. A rebeldia ou rebeldismo é a exteriorização violenta e de improviso, a maior parte das vezes manifestando-se irracionalmente, de uma ação eversiva contra a ordem constituída. Tal tipo de ação, precisamente pela desorganização e impulsividade com que se manifesta, pode ter, até, um sucesso imediato, como acontece no caso de uma insurreição — precedida de uma teorização aplicada — assim como pode dar lugar à verdadeira revolução. A maior parte das vezes, porém, tem um fim destrutivo imediato e a própria manifestação coincide já com o seu desaparecimento na medida em que tende a eliminar, em tempo igual, a si própria e à autoridade contra a qual se rebela. As rebeliões libertárias, freqüentes em todas as épocas históricas, só em raros casos foram "produtivas" para o movimento, tendo suscitado, muitas vezes, reações contrárias em detrimento de todo o Anarquismo.
c) A forma mais orgânica com expressão antiautoritária é seguramente a revolução pregada e propagandiada por numerosos pensadores e múltiplos movimentos e grupos anárquicos que viram nela a possibilidade de redenção da opressão autoritária. Trata-se de uma contradição íntima de todo o antiautoritarismo, na medida em que a revolução é, de per si, inteiramente autoritária, já que pretende obter, pela força, tudo o que a razão, a opinião e o consenso não conseguiram diligenciar. Com efeito, o Anarquismo conscientizou-se de tal contradição e o conceito de revolução enunciado — derrubamento da autoridade - para instauração da nova condição ideal — coincide com o de rebelião, mantendo, de fato, as características do imediatismo e da impaciência revolucionária. Para ela, os fins devem ser alcançados imediatamente e os objetivos da transformação social são realizáveis no brevíssimo arco da revolução-revolta. Aparece claro o elemento utopístico de tal concepção revolucionária. Nesta concepção, a revolução mais do que efetiva é puramente ideal e, mais do que política, sua natureza manifesta-se mais intelectual e abstrata, imaginável em qualquer momento, sempre pronta a explodir, mas nunca manifestada senão na configuração reduzida da rebelião e da insurreição.
4. As táticas. Historicamente, o Anarquismo lançou mão de alguns momentos táticos de manifestação que deram lugar a autênticas teorizações que podemos sintetizar assim: a) voluntarismo; b) espontaneísmo; c) extremismo; d) assembleísmo e movimentismo. Observa-se que estes componentes quase sempre se manifestaram unitariamente, ou, pelo menos, em conjunto e interseccionados entre si, enquanto contribuíram para formar, em grupo, o fenômeno a que se pode dar o nome de "ação libertária".
a) O Anarquismo, recusando a consciência marxista de classe, apóia a sua tese de intervenção política unicamente na escolha livre do indivíduo e, portanto, sobre a vontade de cada um. As várias vontades são unificadas por uma espécie de "espírito vital", de paixão coletiva, emotiva e racional ao mesmo tempo, e agregam as oportunidades de ação dos indivíduos, gerando um comportamento coletivo ou uma perspectiva de atos comuns.
b) As vontades individuais, unificadas na medida acima referida, se comportam espontaneamente de um modo social e revolucionariamente anti-autoritário. O impulso para a destruição — ou "alegria" da destruição, segundo Bakunin —, que é próprio do indivíduo, comporta espontaneamente o intuito de destruição e de revolução, que não requer longa e particular predisposição, mas nasce espontaneamente e sem esforço só pelo fato de que, no presente, existe a autoridade. O espontaneísmo, para o Anarquismo, está na base, portanto, de todo o movimento e de qualquer eventualidade de ação. Esta só tem razão de ser quando promana de exigências sociais, políticas ou simplesmente intelectuais, exigências que terminam por exteriorizar-se sem necessidade de uma estrutura que determine os fins ou de uma direção que indique a elas o caminho. A organização admitida por alguns antiautoritários tem a exclusiva finalidade de facilitar o desenvolvimento das
28 ANARQUISMO opções espontâneas ou, quando muito, a de coordenálas para o objetivo libertário final.
c) As propostas rebeldísticas e espontaneísticas fazem com que o movimento anárquico deva proporse sempre objetivos para além do tempo presente, tanto no terreno político como no social. Ultrapassam, portanto a realidade. Não para uma construção futura a partir da própria realidade, mas para uma subversão futurística que alcance a abolição do que já existe, para entrar, em seu lugar, um nada antiautoritário que se torne o tudo da racionalidade anárquica. São próprias do Anarquismo as múltiplas opções extremísticas e aniquiladoras das condições presentes, independentemente da efetiva gestão delas e da possibilidade de cumprir, no plano prático, o que é reafirmado "extremisticamente", no plano teórico. Valem, para exemplo, as teses sustentadas pelos irmãos Cohn-Bendit na obra Extremismo, remédio da doença senil do comunismo (1968).
d) Para o Anarquismo é o próprio "movimento" espontâneo que cria as condições do progresso ulterior do ideal que se quer afirmar. O movimentismo constitui o privilegiamento da ação em si mesma, analisando a realidade concreta, não com mira de um escopo concreto imediato, mas sim com o objetivo de realizar subitamente um fim abstrato. Não obstante a ligação existente com a realidade e o propósito ultrarevolucionário, o movimentismo esconde, efetivamente, intuitos meramente insurrecionistas, através do contínuo envolvimento em novas ações locais, espontâneas, voluntárias e assim por diante. O movimento se rege e se organiza através do uso do instrumento de assembléia. O assembleísmo é, teoricamente, a forma democrática perfeita. Concede ao indivíduo e à sociedade o modo completo de expressão das capacidades próprias sem imposição de opiniões e de valores alheios. Na realidade históricosociológica é um instrumento capaz de funcionar por si só, Existe um grupo restrito de dirigentes, uma elite (quiçá oculta), capaz de organizar e de programar os trabalhos da assembléia, e de forçar as opiniões dos outros, induzindo a "base" a aceitar o que foi preordenado pela referida elite. É esta, certamente, uma outra contradição interna do movimento antiautoritário, comprovada histórica e teoricamente pelo próprio Bakunin e seus epígonos até nossa época. Bakunin, agindo embora nas organizações oficiais do proletariado (Primeira Internacional), procurou inserir nelas seus próprios núcleos de "fidelíssimos" de elite caracterizados pelo sectarismo e pelo caráter de segredo, com o escopo de definir a linha de ação das próprias organizações e, em sentido mais geral, de todo o movimento antiautoritário..
V. O .— O Anarquismo, depois da válida elaboração dos anos do final do século XIX e princípios do século X e do sucessivo impulso para a ação do período da guerra civil espanhola (1936-1939), teve uma reviviscência nos anos 60. Frente às doutrinas prevalente-mente sociais do passado, o novo Anarquismo renovou, em parte, a própria temática de contestação e antiautoritária, assumindo tons mais moderados no que diz respeito à rejeição de entidades hierárquicas organizadas (Estado, lei e Governo) e tornando mais precisos certos objetivos da própria polêmica antiautoritária (ideologias sociais, burocracia, sociedade de consumo). Juntou à luta habitual contra toda a forma de repressão violenta a luta contra a repressão psicoideológica das sociedades de massa nas quais o homem se aliena, não mais no campo do trabalho e do capital, mas sim conforme interpretações do novo libertarismo, no campo da própria personalidade, privando-se da própria consciência e da própria capacidade de escolher livremente os objetos de seu próprio interesse. O Anarquismo individuou, nestes fatos, os novos vínculos de opressão do homem e, não levando mais a fundo a introspecção, simplesmente os refutou com os mesmos instrumentos com que no passado negara Estado e Governo. Na sua rejeição, o Anarquismo não teve sucesso até hoje, provando com isto que sua verdadeira essência, identificada por Marx e por Engels a partir de 1871-1872 e reforçada, mais tarde, por Lenin por volta dos anos 1917-1920, é a de um movimento de rebeldia de perspectiva imediata, e, também, de uma parte, expressão de exigências utópicas e, de outra, expressão das condições de alienação do mundo intelectual pequenoburguês das sociedades mais evoluídas, estranho aos grandes conflitos sociais do neocapitalismo mas ao mesmo tempo participante deles. Sua essência seria ainda a de um grupo disponível para qualquer ação emancipadora e extremisticamente revolucionária, oposta a qualquer tentativa de restauração e voltada para o retorno a um passado místico, coincidente, aliás, com o futuro utópico do antiautoritarismo total, na perspectiva do que foi apresentado por Herbert Marcuse. Perdendo sua caracterização social, o Anarquismo fez uma opção qualitativamente importante: de uma teoria típica de países atrasados e de grupos explorados passou a ser, genericamente, a expressão dos "rejeitados", dos desclassificados intelectuais e de todas as outras classes da sociedade altamente industrializada. Esses rejeitados estão unidos por contingência da luta contra as novas formas autoritárias do mundo moderno, identificadas mais com o poder político
ANCIEN RÉGIME 29 que rege os Estados e os Governos ou até cora as instituições destes e não com as instituições, entidades e pessoas que detêm o poder econômico.
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Ancien Régime.
Por ANCIEN RÉGIME se entende um certo modo de ser que caracterizou o Estado e a sociedade francesa num período de tempo, bastante definido em seu termo final, e menos definido em seu termo inicial.
Os anos de 1789-1791 marcariam esse período final. Para estabelecimento do começo do ANCIEN RÉGIME, os autores recorrem a diversas interpretações, não excluída uma, muito recente, que adota precisamente a data de 1648 (Behrens, 1969). Todavia, a opinião clássica que, definitivamente, é também a mais útil para compreender o ANCIEN RÉGIME coloca-o no final da Idade Média, entre a Guerra dos Cem Anos e a Guerra das Religiões.
O aparecimento da definição do ANCIEN RÉGIME como identificação do modo de ser da sociedade e do Estado na França dentro do período indicado é coisa póstuma. Pelo menos, é coeva do tempo em que aquele modo de ser da sociedade e do Estado, a saber, o ANCIEN RÉGIME, apareceu mesmo. No momento em que o novo regime se afirmou por oposição ao ANCIEN RÉGIME e o superou, este último ficou definido pelo confronto.
A verificação de tal fenômeno, que de resto não é singular, por se ter apresentado em outras circunstâncias, sugere que, para definir o ANCIEN RÉGIME, devemos partir da "descoberta" que no seu momento final fizeram os contemporâneos.
CONSTITUINTES DE 1789 E DE 1791. — Os constituintes de 1789 e de 1791 que procederam à obra jurídica de demolição do velho regime e à constituição do novo são os contemporâneos e os protagonistas desta história.
A definição de ANCIEN RÉGIME, dada implicitamente pelos constituintes, colhe-se através de três momentos da Revolução que se refletem em outros tantos documentos ou grupos de documentos: os de junho de 1789, os de agosto-setembro de 1789 e a Constituição de 1791.
O primeiro momento surge seis semanas depois da reunião dos Estados gerais de Versalhes (5 de maio). Os deputados do Terceiro Estado declaram representar pelo menos 96% da nação e afirmam que a denominação de Assembléia Nacional é a única que se aplica a eles (17 de junho). No mesmo dia, a declaração com que a Assembléia define como ilegais os impostos reais, consentindo embora, por razões de Estado, que continuem a ser cobrados, começa invocando o poder que a nação exerce "sob os auspícios de um monarca". Três dias depois, no juramento de "leu de Psau-me", a Assembléia Nacional afirma ser chamada a "fixar a Constituição do reino, a regenerar a ordem pública e a manter os verdadeiros princípios da monarquia".
Destes textos emergem alguns elementos.
Primeiramente, conforme testemunhas e os cahiers de doléances, o princípio monárquico, a pessoa e a instituição do rei não estão em discussão e, portanto, a noção do ANCIEN RÉGIME não está estritamente ligada ao caráter monárquico do Governo (de resto, no século XIX haverá, ainda, reis). Em segundo lugar, a nação, idéia estranha ao ANCIEN RÉGIME ou pelo menos confusa e identificada com a pessoa e as funções reais, se afirma como distinta e separada do monarca. Se Luís XIV tinha proclamado: "A nação não se corpori-fica na França, ela reside inteiramente na pessoa do rei"; se Luís XV reafirmara, cem anos mais
30 ANCIEN RÉGIME tarde (3 de março de 1766): "Os direitos e os interesses da nação, de que se ousa fazer um corpo separado do monarca, estão necessariamente unidos aos meus e não repousam senão em minhas mãos"; a Declaração dos direitos humanos e do cidadão (26 de agosto de 1789) afirma, ao contrário, que o princípio de toda a soberania reside essencialmente na nação e que nenhum corpo nem nenhum indivíduo pode exercer autoridade se não emanar expressamente dela (art. 3.°). Finalmente, o fato de que. a Assembléia Nacional tenha como escopo fixar a Constituição do reino, crie um comitê de Constituição, se proclame a Assembléia Nacional como Constituinte e se dedique àquela que será a Constituição de 1791 implica que o ANCIEN RÉGIME não .tinha Constituição, entendendo-se por tal não a Constituição consuetudinária e as leis fundamentais do reino, mas um claro, sólido e incontestável texto legislativo, ditado pela nação ou por seus mandatários com base em certos princípios, como a soberania nacional, os direitos naturais, a igualdade de nascimento dos cidadãos e a separação dos poderes.
A segunda fase é representada pelos decretos emanados entre 4 e 1 de agosto de 1789, com os quais a Assembléia Constituinte "destruiu inteiramente" o que constituía um dos fundamentos do ANCIEN RÉGIME e que os constituintes definiam correntemente como "regime feudal". O conteúdo de tais decretos mostra o que, a seus olhos, parecia regime feudal ou ANCIEN RÉGIME, a saber: toda a espécie de escravidão pessoal, todos os direitos feudais ou senhoriais, décimas de toda a espécie, venalidade e hereditariedade dos cargos, privilégios pecuniários em matéria de impostos fiscais, desigualdade de nascimento e de capacidade jurídica para os empregados. Por outro lado, não são contestados nem o rei — definido "restaurador da liberdade francesa" — nem o caráter católico e cristão do regime.
Dois anos depois, o preâmbulo da Constituição jurada pelo rei, em 14 de setembro de 1791, retomará, de forma solene, as características do regime destruído: um regime feudal, do qual se conservava, pelo menos, o respeito da propriedade e da monarquia; um regime eclesiástico ou ligado à Igreja, do qual se conservava o respeito à religião; um regime de venalidade e hereditariedade nos cargos, do qual não se conservava nada; um regime de desigualdade de nascimento e de privilégios, do qual também não se conservava nada. A estes elementos, já adquiridos, como se viu em 1789, se integravam três novas condenações: a das corporações profissionais, das artes e dos mestres, que ultrapassavam a esfera do direito comum, da liberdade individual e da liberdade de trabalho; a dos votos religiosos, julgados contrários ao direito natural; e sobretudo a da nobreza, duramente contestada e colocada entre os componentes essenciais do velho regime.
Contemporaneamente aos episódios descritos se verifica também o aparecimento, póstumo, do termo ANCIEN RÉGIME. Mas em que data, precisamente? Tocqueville oferece indiretamente uma solução, pondo o termo na boca de Mirabeau no ano de 1790: "Menos de um ano após ter começado a Revolução, Mirabeau escrevia ao rei: 'Comparai o novo estado de coisas com o Antigo Regime'...!" (UAntico Regime e la Rivoluzione, libro I, cap. 2).
administração Que o nome se aplicasse ao sistema
Na realidade, para uma resposta exata, seria necessária uma análise minuciosa da imensa produção legislativa da Assembléia Constituinte a que seria necessário acrescentar uma análise do vocabulário jornalístico, epistolar, quotidiano, etc. Entretanto, pode-se dizer que, embora se fale de ANCIEN RÉGIME numa brochure beaujolaise de origem nobre, datada de 1788, é contudo a partir de 1790 que a expressão começa a sua difusão para ser depois rapidamente adotada, utilizada e transferida, literalmente, para as línguas estrangeiras. Assim, Ferdinand Brunot, no tomo IX da sua Hisloire de la langue française, pondo a si mesmo o problema do aparecimento do termo que tivera tão enorme expansão, escreverá: "Um regime era uma ordem, uma regra, até uma regra de salvação, um modo de secular do Governo da França, nada mais natural. A coragem estava em aplicar-lhe o epíteto de ancien. Era uma tentativa. Os decretos da Constituinte dizem freqüentemente 'le regime précédent'. Encontra-se também 'regime ancien', 'vieux regime', mas 'ANCIEN RÉGIME' prevaleceu rapidamente sobre os outros e tornou-se uma expressão feita".
O que parece não deixar dúvidas é o significado do termo no momento em que surgiu e se difundiu. É ainda Tocqueville quem nos dá a resposta: "A Revolução Francesa não teve apenas o propósito de mudar um Governo 'ancien' mas o de abolir a forma 'ancienne' da sociedade" (I, 2). O ANCIEN RÉGIME, portanto, era uma forma do Estado (v. A), mas era também uma forma da sociedade, uma sociedade com os seus poderes, as suas tradições, os seus usos, os seus costumes, as suas mentalidades e as suas instituições.
ANCIENRÉGIME.— A definição de Ancien Régime, dada até agora com base em textos dos
ANCIEN RÉGIME 31 constituintes, é insuficiente e inadequada, por uma dupla ordem de razões. De um lado, porque pressupõe que uma sociedade e um Estado, como a sociedade e o Estado sucintamente delineados acima, podem, efetivamente, ser subvertidos e anulados e, por conseqüência, definidos apenas através de alguns atos normativos compreendidos no pequeno espaço de alguns meses: o que não pode nunca acontecer, nem acontece. Por outra parte, porque pressupõe que na visão e na atividade dos constituintes não houve confusões nem anacronismos: o que não é menos inexato.
Quanto ao primeiro aspecto, devemos mencionar uma série de processos, ou seja, uma série de lentas mas decisivas novidades, cronologicamente referíveis aos anos do período que vai de 1750 a 1850, que são o oposto do ANCIEN RÉGIME e que contribuem para determinar inexoravelmente o fim e para defini-lo. Sem pretender estabelecer uma ordem de prioridade, essas novidades podem sintetizar-se como: a) a aceleração dos transportes, que proporciona facilidade nos intercâmbios, diminuição do custo dos próprios transportes e uma certa unificação econômica das regiões; b) a industrialização iniciada nos fins do século XVIII e triunfante nos meados do século XIX. ou talvez um pouco mais tarde, e que subtrai à produção agrícola, aos produtores do campo e aos titulares da renda fundiária a pre-eminência até então desfrutada; c) a instituição e a difusão de uma sólida rede bancária; d) a unificação lingüística do país; e) a instauração e a aceitação do serviço militar; f) a unificação jurídica do país, a obra verdadeira da Revolução, que culminou no código Napoleão; g) a unificação administrativa do reino, já tentada desde a monarquia, com a instituição dos intendentes (é a conhecida lição de Tocqueville) e completada depois pela Constituinte, pelo Consulado e pelo Império e simbolizada pelos prefeitos; h) a chama da revolução demográfica, devida à lenta diminuição da mortalidade e ao crescimento rápido da fecundidade; i) o surgimento, se não do ateísmo, pelo menos de uma certa indiferença religiosa.
ANCIENRÉGIME,— Quanto ao segundo aspecto, ocorre observar que na origem das "confusões", em que puderam cair os constituintes, não distinguindo, por exemplo, entre nobreza, questão de sangue e "senhorio", questão essencialmente territorial, ou entre esta última, entendida como modo de aproveitamento da terra e a "feudalidade" entendida como um conjunto de ligações de homem para homem no âmbito de uma sociedade militar (M. Bloch), existe o fato de que o ANCIEN RÉGIME, se aparece definido e claro em relação à sua "morte legal", em relação ao que se lhe seguiu não parece tão claro. A "confusão" que caracterizava o antigo regime e contra a qual os constituintes reagiram em nome da Razão e das Luzes derivava de sua própria natureza. O ANCIEN RÉGIME, na verdade, não era senão o resultado de um conjunto de elementos, geralmente seculares e até milenares, do qual jamais algum foi suprimido.
Daqui deriva a importância que na definição do
ANCIEN RÉGIME se reveste a pesquisa historiográfica, seja pelo fato de esta tocar aspectos peculiares da sociedade e do Estado, seja pelo fato de tentar abranger o fenômeno numa visão de conjunto. Mas mesmo que queiramos limitar-nos às reconstruções gerais, como é inevitável aqui, nos encontramos frente a uma historiografia já notável que lança suas raízes na segunda metade de oitocentos. Remonta a 1856, na verdade, a primeira edição da famosa obra de Alexis Tocqueville, VANCIEN RÉGIME et la Revolution, toda voltada para a demonstração da continuidade entre o antigo regime e a Revolução, e remonta a 1876 a primeira edição da obra antitocquevillia-na, sem dúvida discutível, mas importante, de Hyppolite Taine, Les origines de la France con-lemporaine, t. I., L’ANCIEN RÉGIME.
Citaremos agora brevissimamente as teses mais recentes e significativas, a começar pela de Pegés, que tem do ANCIEN RÉGIME uma concepção dua-lista, resultante da contraposição do Estado à sociedade. Para Pagés, a monarquia do ANCIEN RÉGIME nasceu das guerras civis que atingiram a França durante a segunda metade do século XVI e desenvolveu obra considerável com Henrique IV, Luís XIII e Richelieu e com Luís XIV, de tal forma que corresponde a um dos períodos mais brilhantes da história francesa. Todavia, embora tenha desenvolvido uma função nacional, não soube dar uma base nacional à sua autoridade. Ficou prisioneira do passado. Conservou o velho caráter de uma monarquia pessoal e não se desenvolveu senão através do esvaziamento das instituições que poderiam ter-lhe servido de sustentação. Cometeu o erro de crer que a um Governo basta ser forte. As instituições administrativas criadas por Luís XIV e Colbert aumentaram ainda mais a força do poder, mas não associaram a nação a ela. Assim, frente à sociedade que se transformou, a monarquia do ANCIEN RÉGIME isolada tornou-se incapaz de transformar-se com ela e foi condenada.
Dualista, mas em sentido oposto, no sentido da contraposição da sociedade ao Estado, está também a concepção de Sagnac, segundo a qual a importância da forma do regime político foi exagerada. Dos dois principais motores da evolução
32 ANTICLERICALISMO histórica, a sociedade e o Estado, os historiadores privilegiaram o segundo, porque, em seu tempo, se apresentava muito forte. Ao contrário, na França do ANCIEN RÉGIME, a sociedade foi sempre muito viva. Por isso, é sobre sua evojução durante dois séculos, etapa por etapa, que se deve insistir para constatar em que medida, no regime da monarquia absolutista, a sociedade conseguiu agir sobre o Estado mais do que o Estado sobre a sociedade.
Mas, para além das diversas interpretações historiográficas que se dão do ANCIEN RÉGIME, é lícito perguntar também o que ele representa ainda hoje para nós. À pergunta respondeu o historiador francês Robert Mandrou, que acentuou os efeitos enganosos de certas conotações da sociedade moderna, como a melhoria do teor de vida e o regresso dos sinais externos da desigualdade social. Estes, na verdade, dissimularam o dado essencial, que é representado pela permanência das condições sociais, hierárquicas, hoje presentes, para as quais o ANCIEN RÉGIME forneceu os modelos.
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Anticlericalismo.
Através deste termo se designa geralmente um conjunto de idéias e de comportamentos polêmicos a respeito do clero católico, do C(v.) e do C(v.), isto é, daquela que é considerada a tendência do poder eclesiástico a fazer sair a religião do seu âmbito para invadir e dominar o âmbito da sociedade civil e do Estado; posição polêmica, que se estende também a grupos, partidos, Governos e indivíduos que apoiam esta tendência.
Como atitude de crítica contra a corrupção e os vícios, a hipocrisia e a ganância, a prepotência e a intolerância da ordem sacerdotal acusada de trair e de se afastar dos princípios evangélicos, o Anticlericalismo afunda suas raízes na Idade Média, percorre os séculos sucessivos e se manifesta particularmente na Renascença, na Reforma, no livrearbítrio e no iluminismo, misturando-se com os vários motivos e direções da crítica racionalista, que investiram contra a própria religião católica. Mas é com a Revolução Francesa e nos decênios sucessivos (durante o século XIX) que o Anticlericalismo de origem cristã e católica e o Anticlericalismo racionalista de personalidades particulares e de grupos deixam, em grande parte, seu lugar e são absorvidos por um Anticlericalismo que se manifesta como fenômeno relativamente de massa, essencialmente nos países de predominância católica, na França, Bélgica, Itália, Espanha e Portugal, além de muitos países latino-americanos, e através de formas especificamente anti-romanas e antipapistas na Inglaterra e na Alemanha; Anticlericalismo que justifica e sustenta uma tendência à laicização do Estado e da sociedade, dos costumes e da mentalidade. As principais fontes culturais que alimentam o Anticlericalismo são o iluminismo e o filantropismo racionalista, o hegelianismo, o positivismo evolu-cionista e o positivismo materialista.
Se os termos anticlerical e Anticlericalismo, quase contextualmente opostos aos termos cleri-cal e clericalismo, inicialmente aparecem na forma de adjetivo, dentro da linguagem política, aproximadamente entre 1850 e 1870, em correspondência ao agravamento da oposição ao catolicismo ultramontano, infalibilista e temporalista, o fenômeno na época contemporânea nasce alguns decênios antes, como rejeição de toda a interferência da Igreja e da religião na vida pública; como afirmação de uma necessária separação entre política e religião, entre Estado e Igreja, reduzindo a Igreja ao direito comum e a religião a um fato privado, segundo a inspiração do individualismo liberal; como defesa dos valores de liberdade de consciência e de autonomia moral, que se sentem ter nascido fora de um álveo religioso. Sobre estes temas e outros destes derivados, o Anticlericalismo mobiliza, nos países e no período acima mencionados, vastas correntes de opinião pública liberal e democrática, suscita tendências radicais, que se inspiram nos princípios do livre-pensa-mento, encontra um centro ativo de iniciativas na maçonaria, se expressa numa ideologia positiva, se torna uma paixão e uma autêntica fé que atingem momentos de fanatismo e de intolerância. O Anticlericalismo invade grande parte da imprensa diária e periódica, ocasiona uma forte literatura crítica e uma literatura de divulgação popular, se manifesta nas poesias, nas canções e no teatro, no romance popular e na literatura de cordel, anima inúmeros debates parlamentares. Em certos países, como na França e na Alemanha, o Anticlericalismo, em muitas ocasiões, acusou os clericais e a Igreja, como organismo internacional, de perseguir interesses contrários aos
ANTICLERICALISMO 3 nacionais e, até, de atentar contra a independência do país. Em todos os países, o Anticlericalismo identificou uma área de choque extremamente áspera, que é o clericalismo na escola, e conduziu uma batalha para subtrair o ensino da influência do clero e inspirá-lo nos princípios racionais e científicos. Ele dirigiu a sua polêmica particularmente contra o clero regular, especialmente os jesuítas, que constitui, mais do que o clero secular, um corpo separado dentro do Estado e, ao mesmo tempo, capilarmente presente na sociedade; por isto, exigiu a abolição das ordens e congregações religiosas e a confiscação de suas propriedades.
Numa primeira fase, especialmente, as posições anticlericais não se identificam com a irreligião e o A(.),mas seguem prevalentemente uma orientação deísta; progressivamente, também na medida em que o Anticlericalismo liberal entra em competição com o democrático e o radical emergem cada vez mais posições implícita ou explicitamente ateístas. A polêmica contra a religião e a Igreja católica faz, contudo, freqüente referência, por uma autêntica simpatia e pela necessidade de ter em conta as convicções das massas populares, ao cristianismo primitivo, democrático e igualitário. Se no plano das idéias acaba investindo contra o próprio âmbito da religião e de seus princípios morais e sobrenaturais, no plano político o Anticlericalismo se configura como L(v.), isto é, visa pelo menos, na maior parte de suas tendências, a um Estado plenamente laico, perante o qual sejam absolutamente livres e iguais todos os cultos e todas as profissões de idéias; em alguns momentos e em alguns países, a consecução deste objetivo importou formas duras de luta e de intervenção do Estado em relação à Igreja, como aconteceu com os ministérios Waldeck-Rousseau e Combes, na França da Terceira República, e, em parte, como aconteceu também no tempo do Kulturkampf, na Alemanha bismarckiana. Dessa forma, o Anticlericalismo levou a formas de controle da organização eclesiástica e a perseguições antiliberais.
Durante o século XIX, do Anticlericalismo deísta dos liberais se passou para o Anticlericalismo agnóstico ou ateu dos democratas e dos radicais, para o Anticlericalismo aberta e combativamente ateu dos anarquistas e dos socialistas. Formou-se também um Anticlericalismo de origem protestante, relacionado com as lutas pela laici-dade do Estado, e um Anticlericalismo católico de esquerda e de direita. O Anticlericalismo foi também característica da aristocracia no ANCIEN RÉGIME e se difundiu largamente no meio da burguesia, após a Revolução Francesa e as revoluções do século XIX, e depois no meio da classe operária, enquanto, entre o fim do século X, uma parte da burguesia se reaproximava da Igreja e da religião. O Anticlericalismo atingiu, em parte, seus objetivos de laicização do Estado e da sociedade, em medidas diferentes, de acordo com as características de cada país. O seu declínio, que começou aproximadamente após a Primeira Guerra Mundial, é conseqüência dessa própria guerra, das transformações que se verificaram no mundo católico e na Igreja, transformações provocadas pelo próprio Anticlericalismo e pela clara função de purificação que este desempenhou indiretamente nas relações com o fato religioso, e conseqüência também da diminuição de conflitos entre Igreja e alguns Estados europeus em função anti-socialista e, em seguida, anticomunista e da emergência dos problemas sociais e nacionais que acabaram colocando o problema do Anticlericalismo em segundo plano.
Na Itália, o Anticlericalismo se ligou estritamente à luta para a unificação nacional e, portanto, para a destruição do poder temporal dos papas. Ele acompanha, antes de tudo, a batalha das correntes liberais e democráticas para a criação de um Estado laico no Piemonte. Após a unificação, alimenta, em particular, algumas correntes progressistas da classe política e iniciativas de educação popular, o movimento do livre-pensa-mento e a maçonaria e, em seguida, as diversas correntes políticas da oposição, de republicanos e radicais, de internacionalistas anárquicos e socialistas. Juntamente com as inspirações culturais vindas de além-dos-Alpes, está presente e forte o movimento positivista lombardo chefiado por Ro-magnosi-Cattaneo-Ferrari. No período da direita histórica, o Anticlericalismo atingiu alguns de seus objetivos com a introdução do matrimônio civil, a liquidação do patrimônio eclesiástico, a abolição da isenção dos clérigos do serviço militar e a supressão das faculdades de teologia. Após o advento da esquerda, outras suas realizações são a introdução do juramento civil, a introdução parcial de uma instrução laica obrigatória, a repressão dos abusos do clero e a possibilidade de cremação dos cadáveres. Não foram, porém, satisfeitas, na Itália liberal, outras reivindicações fundamentais do Anticlericalismo mais avançado, tais como a confiscação total dos bens eclesiásticos, a supressão das despesas de culto do orçamento do Estado, a prioridade do matrimônio civil sobre o religioso, o divórcio, a ab-rogação do primeiro artigo da Constituição e a plena liberdade de consciência. A mobilização, as iniciativas e as irritações anticlericais atingem seu cume no período da esquerda; enquanto, entre o final do século XIX e o início do século X, mais se manifesta o abandono do Anticlericalismo e do
34 ANTICOMUNISMO laicismo por parte da classe dirigente e da burguesia conservadora, estes se tornam bandeira de luta dos movimentos da oposição e, no período de Giolitti, elemento de agregação dos "blocos populares" de republicanos, radicais e socialistas. O Anticlericalismo italiano consegue resultados menos incisivos do que em outros países e, no período que precedeu a Primeira Guerra Mundial, já se orienta para um compromisso entre o Estado e a Igreja, para ampliar as bases conservadoras do próprio Estado (v., também, L,S).
BIBLIOGRAFIA— A. E,Lesprit laique en Belgique sous le gouvememem liberal doctrinaire (1857-1870) d'apres les brochures politiques, Louvain 1967; Vanticlericalismo nel Risorgimento (1830- 1870), Antologia elaborada por G. Pe M. THEMELY, Lacaita. Manduna 1966; R. R, Lanticlericalismo en France de 1815 à nos jours, Fayard. Paris 1976; T. T,Videa laica neliltalia contemporânea. La Nuova Itália 1971; G. V, LItalia laica prima e dopo limita, 1848-1976. Anticlericalismo. libero pensiero e ateismo nella società italiana, Laterza, Bari 1981.
[GuiDO V]
Anticomunismo.
Se se quisesse oferecer uma definição vocabular, o
Anticomunismo deveria ser obviamente entendido como oposição à ideologia e aos objetivos comunistas; assim como existem forças sociais e posições políticas antifascistas, anticapi-talistas, anticlericais, etc., também as há anticomunistas. Na realidade, após a Revolução de Outubro, o comunismo entrou na cena mundial, não só como um movimento organizado e difuso, senão também como uma alternativa política real em relação aos regimes tradicionais. Por isso, o Anticomunismo assumiu necessariamente valores bem mais profundos que o de uma simples oposição de princípios, contida, não obstante, na dialética política normal, tanto interna como internacional.
Do lado comunista, o Anticomunismo foi definido por alguns como uma "ideologia negativa" (chamado, em termos polêmicos. Anticomunismo visceral, ou seja, baseado numa oposição global ao comunismo e não na adesão positiva a valores autonomamente escolhidos); foi definido por outros como "ideologia da burguesia em crise" (isto é, como fórmula política de saída, quando as fórmulas tradicionais se revelaram ineficazes no controle das tensões sociais). Mas Togliatti é ainda
"significa dividir categoricamente a humanidade
em dois campos e considerar o dos comunistas. . .
mais explícito quando escreve que ser anticomunista como o campo daqueles que já não são homens, por haverem renegado e postergado os valores fundamentais da civilização humana". Trata-se, no entanto, de definições genéricas e li-mitativas, sendo o Anticomunismo um fenômeno complexo, ideológico e político ao mesmo tempo, explicável, além disso, à luz do momento histórico, das condições de cada um dos países, e das diversas origens ideais e políticas em que se inspira. Quanto ao mais, no número de "Rinascita" citado na bibliografia, se distingue entre o Anticomunismo de tipo clerical, fascista, nazistahitleriano, e "o americano, que é o mais recente. Há depois as variantes de tipo social e de tipo democrático".
Na tradição da I Internacional, dado que os interesses orgânicos do proletariado e das classes progressivas se identificam estreitamente com a linha dos partidos comunistas, a oposição é automaticamente definida como oposição àqueles interesses, assumindo, como tal, aos olhos dos comunistas, um inequívoco valor "de direita". Na realidade, o Anticomunismo não é necessariamente de direita: se existe o Anticomunismo de cunho clerical, reacionário, fascista, etc., também pode haver o que se inspira nos princípios liberais ou, sendo de esquerda, nos princípios da social-demo-cracia. Nestes últimos anos tem-se dado até a retomada de um certo Anticomunismo radical libertário, que muitas vezes ocupa posições de extrema esquerda.
Se o Anticomunismo é, pois, difícil de definir no plano ideológico, no plano mais especificamente político é entendido como convicção de que não é possível a aliança estratégica, para além de possíveis momentos táticos, com os partidos e os Estados comunistas. Isto não se dá necessariamente em atitudes repressivas internas e agressivas externas: mas tanto a estratégia do confronto quanto a da coexistência pacífica partem uma e outra da constatação da incompatibilidade radical com o campo oposto, da inconciliabilidade dos respectivos valores e interesses, mesmo que isso se mantenha dentro das regras da democracia pluralista e das relações normais entre Estados.
Como se vê, o Anticomunismo interno e o que se dá nas relações entre os Estados estão profundamente ligados. Convém, no entanto, manter distintas as duas esferas, para melhor compreendermos sua explicação. a) No plano interno, o Anticomunismo extremo é, como é óbvio, o de tipo fascista e reacionário em geral, que se traduz na sistemática repressão da oposição comunista, e tem por norma
ANTIFASCISMO 35 tachar de comunismo qualquer oposição de base popular.
Nos regimes democráticos, é preciso distinguir os países onde não existe uma oposição comunista relevante daqueles onde a há. No primeiro caso, o Anticomunismo constitui, o mais das vezes, componente fundamental da cultura política difundida, tendo, por isso, uma função importante na integração sócio-política e na legitimação do sistema (mediante, por exemplo, a incondicional aceitação do próprio way of life). Revela-se por isso, extraordinariamente eficaz na prevenção ou isolamento de possíveis movimentos de oposição que se refiram, mesmo que genericamente, ao marxismo e às tradições comunistas.
Ao contrário, nos países onde a presença comunista é forte e constitui uma alternativa potencial, ou, em todo caso, um elemento de constante dialética e de controle da gestão do poder, as possibilidades de encontrar na sociedade civil assen-timento a uma política de choque são evidentemente muito reduzidas, a não ser à custa de fortes dilaceramentos sociais. O respeito pelas regras da democracia obriga então ao confronto com a oposição comunista assente em programas e realizações concretas, buscando-se assim privar de coa-teúdo os motivos que seriam a base principal da adesão e do voto aos partidos comunistas. O Anticomunismo converte-se então em critério discri-minante na formação das coalizões: de um lado, as forças não dispostas à colaboração com os comunistas (a chamada prejudicial anticomunista), do outro, os comunistas e as eventuais oposições da extrema esquerda.
Embora muitos politólogos sustentem que um sistema político de tipo ocidental é incapaz de funcionar em confronto com uma forte formação comunista (sistemas "polarizados" ou "centrífugos"), está-se atuando, no entanto, um real processo de integração dos partidos comunistas ocidentais (v. E)nos sistemas pluralistas, ficando assim superado o Anticomunismo tradicional que, de resto, nem sequer contaria já com o consenso dos setores da sociedade civil não comunistas.
b) No plano internacional, o Anticomunismo é o critério inspirador de uma política de alcance planetário, cujos objetivos são simultaneamente: 1) contenção do influxo dos Estados socialistas; 2) interferência nos negócios internos de cada um dos países, a fim de prevenir e/ou reprimir os movimentos de inspiração comunista (ou tida como tal).
Ambas as diretrizes de ação se interligam e definem o Anticomunismo com relação ao antisovietismo. Por outras palavras, uma política externa anti-soviética não será necessariamente inspirada pelo Anticomunismo, ao mesmo tempo que um regime substancial e propensamente anticomunista não praticará necessariamente o Anticomunismo nas relações internacionais. A China Popular, por exemplo, é indiscutivelmente antisoviética, não decerto por via do Anticomunismo, mas dos próprios princípios comunistas; ao contrário, muitos Estados árabes e africanos, embora possuam muitas vezes culturas políticas nacionais dificilmente conciliáveis com o comunismo, são filo-soviéticos em política externa.
A partir dos anos 60, a frente anticomunista tem revelado uma progressiva diminuição em sua agressividade, tendendo às relações de coexistência pacífica. A vitalidade anticomunista é, contudo, inversamente proporcional à estabilidade das relações hegemônicas a nível mundial. Visto que tais relações são cada vez mais insidia-das pelos processos de emancipação política dos países subdesenvolvidos, pela progressiva escassez das matérias-primas e dos recursos energéticos, e pela existência de fortes tensões sociais nos próprios países ocidentais, não se pode excluir a permanente tendência da leadership ocidental (USA) ao Anticomunismo agressivo abertamente praticado nos anos 50 e 60 (Coréia, América Latina, Vietnã, papel da NATO na Europa, etc.). Já que, por seu lado, também a União Soviética atua, entre as tensões internacionais, com uma estratégia essencialmente imperialista, o antisovietismo e, conseqüentemente, o Anticomunismo encontram, aí, real sustento.
BIBLIOGRAFIA. A . V ., American conservative thought in the twentieth century. ao cuidado de W. F. BuCKLEY, J..Bobbs-Merril, Indianopolis e New York 1970; Id., In-chiesta sul/anticomunismo, em "Rinascita", Anno XI, n.™ 8- 9, 1954; M. M,Stati Uniti e PCI, Laterza. Ban 1981
Antifascismo.
I. C.— Ao termo Antifascismo se dá, de preferência, um significado que abrange todas as tendências ideais, os movimentos espontâneos e organizados e os regimes políticos que historicamente exerceram ou exercem uma oposição a tendências, movimentos e regimes caracterizados como fascistas. Uma interpretação do Antifascismo como fenômeno relativamente unitário pressupõe, portanto, uma interpretação generalizante do fascismo;
36 ANTI FASCISMO pressupõe que fascismo se tornou uma categoria que abrange movimentos e regimes com características distintivas comuns, dentro de um âmbito europeu ou mundial, e difundidos através de parâmetro cronológico que vai dos fins da Primeira Guerra Mundial até nossos dias.
Não falta, por outra parte, quem atribua fascismo, nazismo, franquismo, salazarismo, peronismo, etc. a estádios diversos do desenvolvimento econômico e político, partindo de uma compreensível reação contra o uso genérico e indiscriminado do termo fascismo, e, contemporaneamente, quem procure uma explicação para as semelhanças entre o fascismo europeu e alguns movimentos e regimes iberoamericanos e do Terceiro Mundo.
Houve até quem quisesse ver, sobretudo antes da difusão dos regimes fascistas dos anos 30, o fenômeno fascista circunscrito à Itália: é fácil concluir que, neste caso, o Antifascismo se tornou uma categoria referível unicamente à oposição a um ou a alguns movimentos específicos ou a regimes históricos, geográfica e cronologicamente delimitados.
Se existe, todavia, um relativo acordo sobre movimento e regimes políticos caracterizados como fascistas, não se pode dizer o mesmo sobre o que os individualiza como tais. Até a interpretação daquilo que é orgânico no fascismo, para além dos seus aspectos contingentes e das suas manifestações externas, é exatamente o que diferenciou o Antifascismo nos seus diversos componentes e o tornou um movimento complexo, articulado e contraditório, sobretudo no plano da ação política.
Das três interpretações tradicionais do fascismo se originam, na verdade, comportamentos ideais e práticas diversas. Para os marxistas do movimento comunista, o fascismo é a forma necessária que a ditadura da burguesia assume na fase imperialista do capitalismo. O objetivo do fascismo, segundo cie, é destruir as organizações do movimento operário e o próprio Estado dos soviéticos. Da identificação entre o fascismo e o capitalismo, nasce como único objetivo possível o da ditadura do proletariado. O abatimento do fascismo é visto como necessariamente contextual ao do capitalismo. Só o desenvolvimento da análise marxista e da linha política correspondente voltada para uma menor rigidez, que reconhece que o fascismo é apenas uma das formas possíveis da ditadura burguesa, durante muito tempo a mais reacionária e tiranizante, diversíssima da democracia parlamentar e sobretudo não inevitável, permitirá dissolver a contradição principal do Antifascismo, que existe entre o Antifascismo comunista e as restantes formas antifascistas, e efetivar uma unificação operacional gradativa baseada em conteúdos políticos democráticos.
A ala liberal do Antifascismo se apoia sobre uma interpretação superestrutural do fascismo, ao qual vê como ditadura política e doença moral. O fascismo é a explosão que de improviso e irracionalmente surge de forças demoníacas que encarnam em regimes despóticos.
Uma síntese entre estas duas posições foi tentada por uma terceira corrente interpretativa, que podemos definir, grosso modo, como radical. Essa corrente vê o fascismo como a explosão violenta de germes latentes de algumas sociedades nacionais, mais ou menos deterministicamente imputá-veis às estruturas tradicionalmente autoritárias, às formas antidemocráticas em que se atuou a unificação nacional, à crônica fragilidade das instituições representativas, etc. Esta última interpretação, por não ser insensível aos problemas estruturais e à matriz de classe do fascismo, inclina-se a considerá-lo como um fenômeno patológico (como a posição liberal), mais do que fisiológico (comunistas). Daí nasce que as soluções dadas por liberais e radicais antifascistas diferem substancialmente das- soluções dos comunistas. Segundo eles, a sociedade capitalista é mantida, mas suas estruturas políticas no quadro de um retorno às liberdades políticas e à democracia representativa sofrerão uma reforma de profundidade. Além disso, através da intervenção racio-nalizadora do Estado na economia, é possível eliminar as desvantagens estruturais e os conflitos que originaram o fascismo.
A fase de maior variação estratégica e tática entre o bloco liberal-radical e o bloco comunista reflete um período em que o perigo fascista não se tinha revelado ainda em todo o seu alcance mundial. De Antifascismo pode-se falar essencialmente só para a Itália. A contradição entre fascismo e Antifascismo a nível internacional é de somenos importância, tendo em vista que foi há muito ultrapassada pela oposição entre comunismo e anticomunismo. Esta oposição se reflete exatamente nos vários setores do Antifascismo. Para os comunistas, o derrube do fascismo deve envolver grupos e movimentos, incluindo os socialistas rotulados de social-fascistas, que parecem constituir um sustentáculo e uma reserva dos regimes fascistas. Por parte dos liberais e radicais, ao contrário, comunismo e fascismo não são mais do que species diversas de um mesmo genus: a ditadura totalitária. Por isso, os dois são combatidos, proporcionalmen'e, à sua incidência.
A chegada de Hitler ao poder traz para primeiro plano, também a nível internacional, a contradição fascismo-Antifascísmo. As novas dimensões do perigo fascista determinam uma
ANTIFASCISMO 37 virada na tática da Internacional Comunista: o fascismo é isolado como inimigo principal, no quadro da busca de formas de aproximação do poder por parte da classe operária. A palavra de ordem da frente única e das frentes populares, da unidade de ação popular contra o fascismo e a guerra, pela defesa das liberdades democráticas, põe em andamento um processo de agregação prática do Antifascismo tanto na permanência da individualidade política como ideal de cada um dos componentes que têm suas primeiras manifestações na frente popular francesa e na espanhola de 1936. A guerra da Espanha, de um modo particular, é a prova geral da nova fase do Antifascismo internacional. Nas Brigadas Internacionais, que ocorreram para combater em favor da república espanhola, se realiza pela primeira vez a ação unitária do Antifascismo democrático, comunista, socialista anárquico, mesmo com dolorosas divisões.
Se a chegada de Hitler ao poder e a virada comunista permitem um salto qualitativo do Antifascismo, a Segunda Guerra Mundial permite-lhe atingir uma dimensão internacional e, nos paises ocupados pelos exércitos hitlerianos, talvez uma dimensão de massa. Entram no campo do Antifascismo as democracias ocidentais, cujo comportamento ambíguo e débil tinha de fato favorecido a ascensão fascista. O Antifascismo tradicional age dentro delas, para impedir novos compromissos e capitulações, e determina a intransigência final. Num nível diferente, em sintonia ideal se não político-organizativa, o Antifascismo organiza a mobilização popular e a luta de resistência de cada um dos países ocupados. A resistência européia, nas suas diversas formas nacionais, representa a continuação e a extensão do Antifascismo militante através da luta armada. Através desta, o Antifascismo se tornou uma fórmula política operante a nível mundial e a nível nacional, um cleavage, que sobrepujou completamente, mesmo se de forma provisória, o do comunismo-anticomunismo.
I. O .— O aparecimento de uma oposição espontânea ao fascismo na Itália é do tempo das primeiras violências de grupos: as massas trabalhadoras se organizam em defesa dos próprios interesses econômicos e políticos e só a ação combinada entre o squadrismo e o aparelho repressivo do Estado e certas carências de liderança política consegue dominá-las.
É exemplar, a propósito, a tentativa de organização de uma oposição popular contra o squadrismo através do Movimento degli arditi del popolo, uma oposição popular armada para o par- tidarismo, que vai à falência por causa da desconfiança de todos os partidos políticos.
No campo das instituições partidárias e sindicais, o
Antifascismo italiano começa a conquistar um mínimo de unidade, só muito tarde, depois da marcha sobre Roma, e exatamente no momento da definição de várias unidades políticas. É o delito Matteotti que liquida as últimas ilusões normalizadoras que tinham alimentado até então todos os setores políticos adversos ao fascismo. O Aventino marca o momento da plena e irrevogável ruptura entre o fascismo e os partidos democráticos, ainda no âmbito da legalidade. Mas já nesta fase há uma diferença marcante do partido comunista, que vê no fascismo um instrumento dócil da burguesia de tendência antioperária, destinado a ceder lugar para uma coligação contra-revolucionária baseada na socialdemocracia. É por isso que os comunistas contrapõem ao Aventino legatário a proposta de greve geral, do anti-parlamento e da mobilização das massas.
Com as leis de exceção (1926) se abre uma fase nova do Antifascismo italiano. Há nele dois componentes: um componente clandestino, da conspiração nacional, pelo menos até 1929, de teor meramente comunista e só depois apoiada pela organização socialista-liberal "Giustizia e Liberta", e um componente da emigração, ou, como já se disse, de imigrantes políticos. Em ondas sucessivas, abandona a Itália um grande número de quadros políticos socialistas, comunistas, populares, liberais, democráticos, anárquicos e republicanos, além de uma enorme massa de trabalhadores, protagonistas da resistência espontânea à violência armada (squadrismo) e intolerantes da tirania fascista.
Na União Soviética, na França, Suíça e Estados
Unidos da América do Norte, são reconstituídos os partidos políticos e formados grupos e organizações antifascistas, cuja atividade política consiste essencialmente numa campanha propagan-dística permanente contra o regime de Mussolini. Esta campanha foi realizada através de material impresso, publicações, convenções e demonstrações. Na Itália, a ação clandestina começou através de núcleos antifascistas, a partir das prisões e das ilhas de deportação. Começou, sobretudo, nas organizações comunistas, com algumas ações de tipo anárquico e gielista.
O Antifascismo militante continua, no entanto, profundamente dividido, não só sobre questões doutrinais, de análise e de estratégia, mas também sobre o tipo de ação a pôr em prática: deve-se lutar no exterior ou, de preferência, na Itália, deve-se empregar uma ação de massa ou de grupos capazes e ativos? A esta ação pluralista e caótica, o fascismo responde com prisões e
38 ANTIFASCISMO condenações do Tribunale Speciale, com a atividade da polícia secreta — a OVRA —, com a provocação e o assassinato político, como documentam os casos de Amendola, Gobetti, Gramsci, Rosselli e de centenares de antifascistas.
A esta oposição diretamente política se junta, na
Itália, uma oposição cultural, que tem seu pólo de atração na figura de Benedetto Croce,. em cuja escola se forma toda uma geração de intelectuais antifascistas que acabaria, em parte, no An-tifascismo militante. Centros de resistência moral e de oposição cultural são igualmente as universidades, onde, nos GUF, irá fermentando uma oposição que se transformará em oposição aberta de grande parte da intelectualidade. E não esqueçamos que também o movimento católico tende amiúde a afirmar, com a Ação Católica e com a FUCI, uma autonomia ideal própria, se bem que atenuada e prudente.
As diretrizes do Comintern exigem dos comunistas italianos que não participem daquele que foi o primeiro organismo unitário do Antifascis-mo fora da Itália: a Concentração Antifascista (1927), que reunia, na França, o partido socialista (ainda dividido nas facções maximalista e unitária, mas já perto da reunificação), os republicanos e os membros da "Liga dos Direitos do Homem" (organização decalcada na sua congênere francesa). Foi necessário esperar a virada do VII Congresso da Internacional Comunista, de resto antecipada pelas pressões de massa em busca da unidade e pelo pacto de unidade de ação entre comunistas e socialistas, várias vezes renovado a partir de 1934, para se registrar novo curso nas relações entre os comunistas e os demais antifascistas. O Antifascismo italiano se apresenta unido na frente espanhola, onde obtém, em Guadalajara, a primeira vitória militar.
A unidade de ação antifascista se amplia durante a
Segunda Guerra Mundial, estendendo-se a todos os partidos antifascistas que se reconstituíram na Itália. Surge o Comitê de Libertação Nacional (C.L.N.), organismo que conduz a luta de libertação e tem seu braço militar no Corpo de Voluntários da Liberdade. A insurreição das cidades mais importantes do Norte é o momento culminante: assinala o triunfo do Antifascismo e marca o ponto final de uma época histórica.
NOSSOS .— A derrota do nazifascismo tira da frente antifascista todas aquelas forças políticas, cujo objetivo havia sido a eliminação da ditadura mussoliniana e a restauração do parlamentarismo e das liberdades políticas no quadro das antigas relações sociais. Isso é favorecido pelo surgimento da guerra fria entre os blocos, situação que apresenta de novo como fundamental a antítese comunismo-anticomunismo.
Daí se segue, no plano interno, o insucesso da tentativa social-comunista de continuar a utilizar o Antifascismo como fórmula política, que serviria de base na construção de um regime de democracia progressiva. Entretanto, o Antifascismo continua sendo, nos anos seguintes, um dos fundamentos da estratégia dos comunistas italianos: se o fascismo é o fruto do enxerto das novas formas da exploração capitalista e monopólica no terreno tradicional do domínio e da opressão feudal, a revolução antifascista coincide com a transformação democrática das estruturas que geraram o fascismo e que tendem a reproduzi-lo constantemente.
Nas décadas de 50 e 60, a opção antifascista reveste, no entanto, um papel politicamente marginal, mesmo que o Antifascismo italiano pareça recobrar uma função e uma capacidade autônoma de mobilização por ocasião da tentativa de Tambroni de formar um Governo clérico-fascista. Nas sangrentas demonstrações de julho de 1960, surge uma nova geração antifascista (os "jovens das camisetas listradas"), ao lado dos veteranos do Antifascismo e da resistência.
A "negra intriga" que representou o fascismo não parece, contudo, ter sido totalmente extirpada da sociedade italiana. Por volta dos anos 70, torna a apresentar-se em resposta às pressões mo-dernizantes e democratizantes dos operários e estudantes, levadas a efeito no fim da década. O regurgitamento fascista apresenta então uma tríplice face: uma face legalista e honesta que obtém sólido consenso eleitoral nas eleições administrativas parciais de 1971; uma face eversiva e populista, alimentadora, principalmente no Sul, de tentativas de insurreição que adquirem, como em Reggio Calábria, um caráter de massa; e, enfim, a face terrorista dos atentados e da matança de massa, que constitui a forma predominante do neofascismo na década de 70 e que faz os seus ensaios na Piazza Fontana, em Bréscia, com o Ita-licus, e em Bolonha. A esta articulação da ação neofascista consegue o Antifascismo italiano opor uma mobilização constante na defesa das instituições e uma ação sutil e tenaz tendente a isolar e conter o movimento eversivo. Aparece nestas circunstâncias uma terceira geração antifascista, de origem operária e estudantil, também ela, aliás, dividida entre duas hipóteses estratégicas: o elemento ligado aos partidos da esquerda histórica visa à desagregação do bloco reacionário que nutre o neofascismo e reivindica um conjunto de reformas econômicas e políticas capaz de lhe minar as bases sociais; a parte mais radical do novo Antifascismo contrapõe a necessidade da
ANTI-SEMITISMO 39 autodefesa e da criação de uma alternativa revolucionária no país que se aprimore nas lutas sociais e anti-institucionais.
BIBLIOGRAFIA.– L’antijascismo italiano, a cuidado de P. A.Editori Riuniti, Roma 1961; G. A,Comunismo, anlifascismo. resisienza. Editori Riuniti, Roma 1967; Id., Inlervisia suWantifascismo, Laterza, Bari 1976; N. B, Democrazia e ditlaiura. in Política e cultura. Einaudi, Torino 1955; L'Itália antifascista dal 1922 al 1940. ao cuidado de S. C.Laterza. Bari 1976; Lantijascismo in Itália e in Europa. 1922-1939. ao cuidado de E. GoLLOTTi, Loescher, Torino 1975; R. F.Le interpretazioni del fascismo. Laterza. Bari 1953; Fascismo e antijascismo neWItália repubblicana. ao cuidado de G. Q.Stampatori, Torino 1976.
[SlLVANO BELLIGNI]
Anti-semitismo.
I. C.— O conceito de Antisemitismo pode parecer suficientemente claro de modo a tornar supérflua uma definição. Na realidade, se em sentido puramente lingüístico não pode haver dúvida sobre o significado da palavra — "hostilidade, em relação aos hebreus" —, no campo histórico, o termo foi e é aplicado a fenômenos inteiramente diferentes. Na verdade, não se pode considerar, de modo unitário, o Anti-semitismo antigo e medieval e o Anti-semitismo moderno, que se desenvolve a partir da segunda metade do século XIX, em relação com o nascimento do nacionalismo. Ainda, à parte, devem ser colocadas as correntes anti-semitas que surgiram em alguns países após a Segunda Guerra Mundial, como é o caso da URSS, Estados árabes, conhecidos por suas manifestações de hostilidade para com Israel. Trata-se, de fato, de fenômenos bem diversos, que partem de causas econômicas e sociais bem distantes entre si. Neste contexto, mais do que Anti-semitismo, seria mais correto falar dos Anti-semitismos através da história. A tentativa de considerar o Anti-semitismo como um fenômeno unitário ou como uma categoria universal só pode levar-nos a conclusões a-históricas e aberrantes deste tipo: quase que entre as características dos hebreus estariam inseridos fatores que determinam a perseguição a eles; pesa sobre eles uma "maldição", e coisas do gênero.
Dito isto, não pode fugir à observação do historiador o fato de que, se diversas comunidades, em diversos países, épocas e circunstâncias sócioeconômicas, desenvolveram movimentos de hostilidade para com um mesmo povo, deve haver qualquer fator unificante, ligado à condição hebraica, que explique a convergência de ódios e perseguições, de origens variadas, sobre esse povo. Colocando de lado as explicações de ordem religiosa ou genericamente sociológicas, tal fator é hoje identificado com a colocação econômica — e por conseqüência social — dos hebreus através da história. Como observa A. León, num ensaio sobre a questão hebraica, juntamente com a tradicional dicotomia da condição hebraica — povo e religião — deve ser considerado um terceiro fator: terem sido os hebreus, durante muitos séculos, também uma classe social, primeiro de comerciantes, e de comerciantes e usurários depois. Este fenômeno caracteriza um povo, que é ao mesmo tempo uma classe social. Não é um caso único na história da humanidade. Basta pensar, por exemplo, no papel da burguesia urbana desenvolvido pelos alemães nos países eslavos e bálticos, ou na colocação atual dos parses da índia, ou, para citar casos mais próximos do hebreu, na função comercial dos chineses do Sudeste asiático ou dos sírios e libaneses em diversas regiões da África e da América meridional. A colocação histórica dos hebreus como povo-classe explica, de uma parte, a freqüência de conflitos e perseguições superficialmente atribuídas a fatores religiosos ou ocasionais, mas na realidade derivada de efetivos contrastes de interesses no campo econômico e, de outra parte, como na Europa dos séculos XIX-X, embora já menos importante os motivos de real conflito econômico, a posição dos hebreus como componente ainda não "assimilado" pela sociedade foi utilizada para desviar a atenção de tensões sociais derivadas de outros fatores bem complexos e muito diferentes. O Anti-semitismo não pode, portanto, ser considerado como um fenômeno histórico unitário, a menos que não se limite a validade do termo ao Antisemitismo em sentido próprio, isto é, aquele movimento particular surgido na segunda metade do século XIX, que culminou depois com as perseguições hitlerianas, e que apresenta conotações precisas e ligações claras com outros fenômenos históricos contemporâneos (nacionalismo, imperialismo, etc.). Uma extensão arbitrária do conceito não pode levar senão a erros de interpretação e a distorções da perspectiva. Ainda hoje, é pouco claro o significado preciso do termo Anti-semitismo. Nos últimos anos, depois da guerra árabe-israelense de 1967, em muitas fontes de informações, mesmo hebraicas, pôde-se assistir a freqüentes casos de confusão — algumas vezes interessada — entre conceitos substancialmente diversos, como o Anti-semitismo, o
40 ANTI-SEMITISMO anti-sionismo e a oposição à linha política do Governo judeu.
Ocorre esclarecer aqui, para desfazer esta confusão, que se deve entender por Anti-semitismo apenas a hostilidade direta contra os hebreus considerados como comunidade complexa, nas suas conotações étnicas de povo e de religião. De outro lado, não podem ser consideradas como manifestações de Anti-semitismo, por exemplo, a luta econômica levada a cabo, na Idade Média, por um banqueiro cristão contra um banqueiro hebreu, ou a tentativa de dissuadir alguém de aderir à religião hebraica verificada na União Soviética pósrevolucionária, no quadro da campanha geral contra a religião que foi dirigida também contra outras confissões. Do mesmo modo, não podem ser consideradas como anti-semitas aquelas posições — como a oposição à política israelense ou ao movimento sionista — que, mantendo-se no terreno da crítica política, são dotadas daquela "legitimidade" moral — prescindindo de qualquer juízo sobre sua validade — que falta aos fenômenos aberrantes e repugnantes do Anti-semitismo e do racismo.
— Se quisermos definir uma periodização da história do Anti-semitismo, devemos, antes de tudo, subdividir esta em duas grandes fases principais. A primeira, que vai da Idade Antiga até o século XIX, é caracterizada pelo fato de que o Anti-semitismo afunda suas raízes na posição sócio-econômica particular dos hebreus, que são conhecidos na sociedade como dotados de uma particular função econômica ou, pelo menos, de uma colocação bastante precisa. A segunda, que compreende, grosso modo, o período de 1850-1950, desenvolve-se nos países ocidentais no período da rápida assimilação econômica e social dos hebreus, e toca seu ápice quando estes se transformaram num dos componentes perfeitamente integrados da sociedade. Se estas são as características de fundo da posição hebraica, nas duas grandes fases da história do Anti-semitismo, uma outra diferença entre as duas épocas é dada pela superestrutura ideológica (ou "cultural", se de cultura se pode falar a propósito) que reveste o Antisemitismo nos dois períodos: no primeiro, a partir do século IX d.C, o Anti-semitismo se recobre geralmente de motivações religiosas; no segundo, é o aspecto étnico e racional que sobressai.
Contrariamente à opinião durante certo tempo difundida, a dispersão dos hebreus teve início muito antes da queda de Jerusalém (ano 70 d.C); alguns séculos antes da era vulgar, núcleos de comerciantes hebreus se fixaram nos maiores centros urbanos do império persa. No século I d.C, na época da destruição do Templo, comunidades florescentes se acham já em numerosas cidades, sobretudo em Roma e Alexandria. Dedicadas provavelmente ao comércio, estas comunidades cumprem importante função econômica. São, por isso, não somente toleradas, mas até freqüentemente protegidas pelas autoridades imperiais. Em Roma e nas principais cidades do Ocidente, o Anti-semitismo está, por isso, pouco difundido. Até porque a natureza tolerante do paganismo e a estrutura multinacional do império impedem o surgimento de hostilidades de tipo religioso e racial. Pouco freqüentes, a nível de massa, as atitudes de antipatia ou de desprezo para com os hebreus aparecem, todavia, uma vez ou outra, entre as classes superiores ou nas camadas intelectuais. Tratase de um Anti-semitismo que se enraíza nas antigas tradições agrícolas da sociedade romana e no conseqüente desprezo pelas atividades mercantis; desprezo que nasce, por sua vez, de um profundo antagonismo econômico entre produtores de bens e comerciantes, que se apropriam de uma parte destes bens, mas que são também necessários à sociedade e por isso mesmo inelimináveis. Também a atitude nacionalista dos hebreus e o seu proselitismo, diferenciando-os do tradicional comportamento dos outros povos assimilados no império, que se reconhecem súditos do mesmo e mantêm a própria religião sem porém procurarem estendê-la a outros, choca a mentalidade cosmopolita dos romanos, suscitando reações de hostilidade. Parcialmente diversa é a situação nas regiões heleni-zadas do Oriente e sobretudo em Alexandria, onde a proteção concedida pelo Governo imperial à comunidade hebraica determina, em várias circunstâncias, movimentos antisemitas de mais vastas proporções.
No século IV d.C, o cristianismo torna-se religião oficial do império. A atitude tolerante do paganismo cede lugar a uma política asperamente confessional, voltada para a afirmação forçada da religião de Estado; multiplicam-se as leis e as disposições tendentes a discriminar aqueles que professam outras confissões. Os hebreus são postos em condições de absoluta inferioridade jurídica e privados de todo o direito civil; e em tal status permanecerão durante toda a Idade Média e a Idade Moderna até a emancipação. O Anti-semitismo assume, nesta época, um dos seus componentes ideológicos fundamentais: o componente religioso, fundado sobre a aversão à "obstinação" hebraica de não reconhecer o advento do Messias e sobre a acusação de "deicídio", que começa a ser dirigida aos hebreus. Também o antigo desprezo das classes superiores romanas
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